A técnica do melisma ainda divide opiniões. Alguns acreditam
que é um recurso de ornamentação da melodia que mostra o domínio técnico do
cantor; outros pensam que se trata meramente de exibicionismo vocal.
Particularmente, acho que a técnica do melisma está ficando cansada.
Em bom português, já deu o que tinha que dar. Não estou dizendo que o melisma será abandonado. Mas o esgotamento da técnica talvez possa aparar as arestas e deixar o canto mais límpido e simples.
O ponto central para o cantor é o lugar da voz, é onde inserir um recurso técnico. Os maus imitadores não sabem aonde colocar a voz e abusam do melisma. E aí, cada fim de frase, é um volteio; cada curva, uma cantada de pneu.
O ponto central para o cantor é o lugar da voz, é onde inserir um recurso técnico. Os maus imitadores não sabem aonde colocar a voz e abusam do melisma. E aí, cada fim de frase, é um volteio; cada curva, uma cantada de pneu.
O melisma vem de longe. A música judaica é cheia de melismas. O canto gregoriano é
também um canto melismático (como na gravura acima). O melisma árabe ou o melisma da black music
americana podem ser usados na música cristã? Sim. O melisma
pode se tornar um maneirismo chato e abusivo? Sim.
Muita gente diz que o uso do melisma reduz o louvor a um
mero show e que os solistas abusam da liberdade para exibir todo seu virtuosismo. Alguns recomendam que o mais adequado é o canto simples entoado sem esforço e com clareza na pronúncia das palavras.
Quando o anasalamento da voz é exagerado e a dicção é
distorcida, de fato, certas palavras soam incompreensíveis. Clareza é
absolutamente necessária. Muitos cantores americanos costumam distorcer a
pronúncia de várias palavras. Ao cantar em português, alguns cantores
brasileiros tentam reproduzir essa prática, mas raramente soa conveniente. Em geral,
a atenção do ouvinte é desviada para a estranheza da pronúncia e, não raro, aquele
trecho vira alvo fácil de piada e imitação de trejeitos.
Por outro lado, é bem provável que os críticos que acusam o
melisma de ser uma exibição gratuita de virtuosismo apreciem a desenvoltura de um
violinista ou de um pianista quando estes improvisam floreios e volteios em um
hino ou em uma peça erudita. Parece que, quando há
demonstração de habilidade instrumental, isso é excelência técnica, e quando há
demonstração de habilidade vocal, então isso é exibicionismo profano.
Lembremos a oportunidade em que o cantor Leonardo Gonçalves foi
convidado para cantar num show de Ed Motta. Ambos cantaram a belíssima música que Stevie Wonder fez para a filhinha (“Isn’t
she lovely?”). Como todos sabem, Stevie Wonder nunca pode enxergar a própria filha,
mas agradeceu a Deus pelo presente maravilhoso (aqui, a tradução da música). Ao
final da canção, Leonardo e Ed começaram uma espécie de duelo de melismas.
Todos foram criticados: o cantor, o melisma e a canção.
Curioso como até mesmo quando um músico como Stevie Wonder faz uma canção em que agradece a benção divina da paternidade, certos evangélicos, em vez de elogiarem sua lembrança de Deus, só deram atenção ao estilo musical do qual não gostam!
Na mesma época, o violinista Paulo Torres, spalla da Orquestra Sinfônica do Paraná (e como Leonardo Gonçalves, também um artista cristão), acompanhava o cantor Andrea Bocelli em concertos na TV. Desnecessário dizer que não houve críticas.
Quando o cantor demonstra uma técnica apurada, ele é visto como um “surfista da voz”. Mas, e como ficam os surfistas do
piano, da flauta, do violino?
As diferentes reações aos dois episódios que mencionei deram a impressão de que o direito ao virtuosismo é concedido
exclusivamente aos intérpretes e instrumentistas de música erudita. Ao intérprete de música popular, reserva-se o direito de ficar calado.
Mas há uma diferença que eu gostaria de comentar. Essa diferença
não está no estilo musical e nem na sinceridade do cantor ou do instrumentista.
Está no “aonde”. Em que local é apresentada e para que se destina determinada
música?
Leonardo Gonçalves e Paulo Torres foram ao
terreno de reconhecidos cantores: o palco. Dentro da proposta de cada
espetáculo, ambos se saíram muito bem. Mas digamos que eu fosse um pianista de
verdade e que Ed Motta me chamasse para um duelo de improvisação ao piano. Certamente a qualidade da minha performance seria
criticada, mas não o fato de eu demonstrar minha técnica pianística.
Diferente, porém, é o propósito da música feita por um cantor ou um
instrumentista na igreja. O terreno é o púlpito. Nesse caso,
sempre cabe a velha máxima: “Para a glória de Deus e o deleite dos irmãos”. Deus
deve ser glorificado por meio da performance de um músico, o que inclui
excelência técnica (de acordo com o talento e o esforço de cada um) e
sinceridade do coração em louvar a Deus. As pessoas que ouvem devem ser elevadas
espiritualmente e enlevadas artisticamente, o que nos faz voltar aos requisitos
da excelência e da sinceridade.
Mas excelência e sinceridade não bastam. É preciso não só a consciência do lugar da voz na música, mas também da voz adequada para o lugar.
Mas excelência e sinceridade não bastam. É preciso não só a consciência do lugar da voz na música, mas também da voz adequada para o lugar.
Durante o ofertório, costuma-se apresentar música
instrumental. Não penso que seja hora de fazer um medley de um noturno de Chopin com um
hino. Mas é possível apresentar um hino tradicional ou uma canção contemporânea
tocada ao modo erudito (ou em estilo contemporâneo que concorde com o que a congregação espera ouvir na liturgia do culto). Durante uma música cantada ao final de um
sermão pastoral, não há razão inserir floreios vocais. Seria o mesmo que um
pianista ficar fazendo glissandos e trinados como “fundo musical” de um apelo.
Ao participar dos momentos musicais de sua igreja, o músico cristão não pode perder o senso adequado do lugar onde está e do propósito da adoração. Ter sempre um cântico no coração nem sempre é suficiente. É preciso ter consciência da maneira mais apropriada de entoar um cântico para tantos corações reunidos no mesmo lugar.
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