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Bob Dylan e a religião


O cantor e compositor Bob Dylan completou 80 anos de idade e está recebendo as devidas lembranças. O cantor não é admirado pela sua voz ou pelos seus solos de guitarra. Suas músicas não falam dos temas românticos rotineiros, seu show não tem coreografias esfuziantes e é capaz de este que vos escreve ter um ataque de sonolência ao ouvi-lo por mais de 20 minutos.

Mas Bob Dylan é um dos compositores mais celebrados por pessoas que valorizam poesia - o que motivou a Academia Sueca a lhe outorgar um prêmio Nobel de Literatura. De fato, sem entrar na velha discussão "letra de música é poesia?", as letras das canções de Dylan possuem lirismo e força, fugindo do tratamento comum/vulgar dos temas políticos, sociais e existenciais.

No início de sua carreira musical, Dylan era visto pelos fãs e pela crítica como o substituto do cantor Woody Guthrie, célebre pelo seu ativismo social e pela simplicidade de sua música. Assim como Guthrie, o jovem Bob Dylan empunhava apenas seu violão e entoava poeticamente questões relacionadas à luta pelos direitos civis nos anos 1960.

Porém, sua apresentação no Festival de Newport em 1965 gerou controvérsia entre seus fãs que o viram subir ao palco e cantar as mesmas letras e as mesmas músicas, mas agora com guitarra elétrica e banda. Os puristas da folk music repudiaram a eletrificação do violão e criticaram o que seria uma submissão à indústria do rock. Dylan voltaria à música de estilo country no final dos anos 60, mas já seria tarde. Para os fãs, Dylan teria vendido a alma ao sistema e morrera ali. 

A questão é que quando você fala a expressão "vender a alma" as pessoas ouvem como "vender a alma ao diabo". Então, teorias começaram a surgir: Dylan teria morrido de verdade antes do festival e um novo e diabólico Dylan está por aí até hoje fazendo shows; o cantor também teria feito um pacto com o tinhoso em troca de...

Aí é que está: em troca de quê? Dylan não se tornou um grande guitarrista - talvez porque todas as super-habilidades guitarrísticas dos anos 60 já haviam sido concedidas à Eric Clapton, Jimi Hendrix, Jimmy Page, Santana...; Dylan não tem nem mesmo uma voz agradável; suas canções mais famosas dos anos 60, além de ter letras superlongas, são sobre justiça social, reflexões sobre a vida e direitos civis. Ou seja, seu estilo vocal, musical e poético estava na contramão daqueles roqueiros aos quais se atribuem pacto com o diabo.

Pra completar, Dylan nem mesmo teria cumprido sua “parte no pacto”, visto que no final dos anos 70 ele se converteu ao cristianismo e lançou 3 discos massacrados pela crítica e pelo seu público habitual. Nos novos shows, ele só cantava a fé cristã e o chamado à conversão espiritual como um cantor gospel. Entre uma música e outra, ele pregava como um pastor (anos depois, ele deixou o cristianismo ortodoxo e voltou às suas origens judaicas).

 Quando ele ganhou o Grammy pelo disco Slow Train Coming, ele disse: “Quero agradecer o Senhor por isso”. O título do disco seguinte é Saved. Nos discos seguintes ele amenizou o proselitismo religioso, mas ainda seguia incluindo algumas canções de temática cristã. Por exemplo, na canção “Every grain of sand” ele canta que em momentos de desespero e fraqueza ele encontra força nas mãos de Deus e consolo nas coisas que Ele criou, até mesmo em “cada grão de areia”.

"Every Grain of Sand" cantada por Lizzie Wright

"Every Grain of Sand" com letra original no vídeo

Em entrevista à revista Rolling Stone (junho/1984), ele disse: “Nunca fui agnóstico, sempre acreditei num poder superior, que este não é o mundo verdadeiro e que há um mundo por vir”. E por que ainda se fala no tal pacto se Dylan ainda continua cantando suas canções cristãs junto com suas canções laicas e reflexivas sobre justiça social?

Em 2004, o cantor concedeu entrevista ao programa de TV americano 60 Minutes em que ele diz: "Fiz uma barganha há muito tempo atrás".

"Com quem?", é a nossa curiosidade.

"Com o comandante-chefe desse mundo e do outro".

Foi o suficiente para reacender a história do pacto dylanesco. Mas vamos ao contexto da entrevista. Dylan diz ao entrevistador: "A única pessoa para quem você tem que pensar duas vezes antes de mentir é você mesmo ou Deus". Quando o entrevistador pergunta porque Dylan continua a fazer turnês, o cantor responde isso é uma barganha que ele fez muito tempo atrás com o comandante-chefe "desta terra e do mundo que não vemos".

Por que relacionaram essa resposta a um suposto pacto com o diabo? Talvez porque esse pacto já foi comumente relacionado a músicos, sejam do blues (Robert Johnson), do rock (todos os que morreram aos 27 anos e os que continuam vivíssimos) e da música de concerto (Paganini). Costumo dizer que ninguém atribui o sucesso de Roger Federer, Serena Williams, Hortência ou Messi a algum pacto demoníaco.

O fato que temos, de comprovação histórica e musical, é que Dylan era um jovem poeta que, entre outros temas, cantou a justiça na juventude e a redenção cristã na maturidade. Na canção "Hurricane", de 1976, ele e Jacques Levy narram a história do boxeador Rubin "Hurricane" Carter que foi preso sob a falsa acusação de assassinato num julgamento que se revelou absurdamente racista. Se denunciar o racismo é prática de quem fez alguma barganha com "as trevas", então os acusadores racistas fizeram pacto com quem?? É complicado, senão contraditório, dizer que alguém que deu voz a esses temas tenha um pacto sobrenatural com uma entidade a qual atribuem todas a injustiça, maldade e falta de esperança. 

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