Um repórter americano embarca de volta para os EUA quando o regime sanguinário do ditador Pol Pot passa a perseguir e matar todos os opositores. Seu amigo cambojano é preso e forçado a entrar no sistema de reeducação do novo governo.
Esse é o enredo do filme Os Gritos do Silêncio (1984), no qual há uma cena que comoveu meio mundo. É quando o filme quer passar a mensagem de que a insanidade bélica pode ser curada por meio da fraternidade entre as pessoas. Parece um sonho, mas se todos se unirem, o mundo poderá viver sem divisões, como se fosse realmente um. Eu também gostaria que fosse assim. E o John Lennon também. É dele a bonita canção que o filme faz tocar: “Imagine”.
Só há um problema. Não com a tocante melodia da música. Não com as boas intenções do filme ou do compositor. A questão é outra e talvez tenha passado despercebida para o diretor do filme, para o responsável pela trilha sonora e para nós espectadores.
A letra de Lennon almeja um mundo sem ambição, cobiça, egoísmo. Sem o imperialismo assassino, sem os motivos torpes para matar e também sem motivos pelos quais morrer (nothing to kill or die for, diz a letra).
“Imagine que não exista nenhum paraíso, é fácil se você tentar; imagine que não há inferno e que acima de nós exista só o céu [o espacial]”. John Lennon devia ter em mente a intolerância e a violência de sistemas religiosos que mataram em nome de Deus e de Alá, pois mais à frente a letra da canção diz: “imagine que não há mais religião”.
Nos anos 70, o Lennon vivia uma fase família (sua canção "Woman" é uma linda declaração de amor à mulher) pacífica e pacifista. Mas ele imaginava um mundo sem religião alguma ou sem um certo tipo de religioso? Não sei dizer ao certo. Quanto ao filme, percebo que seu diretor, pretendendo usar a canção "Imagine" por seu simbolismo de paz, acaba se contradizendo, já que ao denunciar o sistema antirreligião de Pol Pot, usa uma música que imagina um mundo de paz, mas também sem religião. E o regime de terror de Pol Pot preconizava um mundo sem Deus e sem religião. E que matava em nome de Deus nenhum.
As cenas de “reeducação” dos prisioneiros do governo cambojano no filme mostram a tentativa de extirpar da mente das pessoas a ideia de qualquer religião. O comunismo soviético agiu da mesma forma. Quiseram sair da religião para entrar na história. Mas entraram na história da violência, do campo de concentração, da repressão facínora.
A canção de Lennon é querida por muita gente e tem uma legítima intenção pacifista. Porém, escritores ateus como Sam Harris e Richard Dawkins também imaginam um mundo sem religião. Ao criticar as religiões como um mal ao mundo, eles poderiam ser lembrados de que os regimes políticos que almejaram um mundo sem religião e sem religiosos, não só lhes tiraram a liberdade de culto (e de ideologia política) como também lhes tiraram a vida.
O cristianismo prediz um paraíso no céu e não na terra. Até porque, por aqui, ele é muitas vezes tratado como balcão de negócios, como tribunal de censura, como cartola para mágicos da fé. E, francamente, isso não é culpa de nenhum descrente. Já o comunismo lutava para ver a classe operária chegando ao paraíso das conquistas sociais. O capitalismo se contenta em ver todas as classes chegando ao paraíso das compras. O ateísmo gostaria de chegar a um paraíso sem Paraíso.
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