As histórias bíblicas parecem não mais fazer sentido para boa parte da juventude urbana contemporânea. Essas narrativas passaram a ser entendidas somente como alegorias cujos temas (pecado, redenção) são recodificados de acordo com as situações particulares de cada indivíduo. Essa é a análise certeira do sociólogo Fredric Jameson.
Não há dúvida de que as gerações se sucedem desenvolvendo sempre uma nova sensibilidade cultural e estética. É certo, porém, que adentramos o século 21 com o aumento do número de cristãos e também de céticos quanto ao cristianismo. Razões para a juventude questionar as instituições religiosas, há de sobra e desde sempre.
Mas o CD Introdução, dos jovens irmãos André e Tiago Arrais, não está interessado em questionar a igreja enquanto instituição oficial. Este é um trabalho preocupado em reafirmar valores e doutrinas e encorajar a fé em Deus.
Sua linguagem musical, mais próxima do idioma rítmico-melódico contemporâneo, é o veículo utilizado para apresentar uma introdução da história da redenção à juventude contemporânea. Enquanto o absoluto da verdade redentiva não muda, mudou o aspecto estilístico de sua apresentação. Claro que essa tensão entre o incondicional pregado nas letras e o aspecto dinâmico das formas musicais nem sempre é pretendida (ou alcançada) por todo músico cristão.
Enquanto ouvia o CD, eu pensava que as canções podiam estar uns dois tons abaixo e que alguns ritmos não eram os meus preferidos. Mas percebia que muita gente mais jovem que eu poderia ter acesso a uma teologia consistente dentro de uma inovação de estilo que não abusa de guitarras e maneirismos vocais.
A primeira canção, "Introdução", explicita sem metáforas o plano divino para a redenção da humanidade (a elaboração do plano, o nascimento de Jesus, sua morte e ressurreição). Declara que, com tantas fábulas existentes, só a história da nossa redenção pode transformar.
A segunda música faz coro com a primeira: “Aquele que amou antes de existirmos”, “Não fomos fiéis dando ouvidos a outra voz”, “Então o Filho vem mostrando o que o amor queria nos dizer desde o princípio”. Versos que sustentam que a compreensão da visão geral do plano redentor explica os detalhes do painel da vida humana.
Há muitas inquietações que traumatizam a fé, que encharcam a alma de dúvida. Deus existe? Se existe, é como diz a Bíblia? Ele se importa com este planeta? Três proposições fundamentais são questionadas de uma vez: a Criação, a Redenção da humanidade, a volta de Cristo.
Os irmãos Arrais não negam essas questões e cantam: “E se só há verdade na ciência, na razão, no que se vê / E o mundo acaba se tornando o que se assiste na TV”. Mas em seguida declaram: “Mas eu creio em Ti, pela fé vou seguir / Esperando aqui a promessa se cumprir”.
Assim, a dúvida natural é submetida não à evidência empírica, mas à prova existencial. Enquanto o desejo de ver a evidência material de elementos metafísicos nunca está satisfeita, a comprovação interior da existência de Deus é perfeitamente satisfatória ao coração do que crê. Por isso a canção “Manhã” diz que “Não é fácil explicar, muito menos comprovar / Que o mesmo Cristo que morreu, ressuscitou e vivo está / Pois toda prova que possuo minha vida mostrará”.
Como escreve Ravi Zacharias: “Deus pôs neste mundo o suficiente para tornar a fé Nele algo bem razoável. Mas, deixou de fora o suficiente a fim de que viver tão somente pela razão pura fosse impossível” (A morte da razão).
Vivemos em tempos em que afirmar a fé cristã publicamente em certos espaços (universidades, locais de trabalho) é constrangedor. Cada vez mais o ateísmo empurra a fé para o armário, enquanto o multiculturalismo religioso prefere que cada crente guarde sua doutrina para sua igreja.
A profissão de fé dos irmãos Arrais se completa com “Lembra-te” e “Eu acredito”. A primeira trata exclusivamente do sábado e, não por coincidência, é a quarta canção do CD.
Novamente, eles partem do questionamento (“Será que a lei quebrada foi na cruz? Ou anulada foi e perdeu o valor? Como compreender que o Autor de toda vida separa um santo dia? Será que o que creio é mera teoria?”) para a resposta afirmativa: Eu sou criatura, Deus é Criador; Sábado perfeito, creio e obedeço / cravado na pedra para que eu lesse: Lembra-te...do dia santo e da criação.
O cerne do CD está em um resumo da letra de “Eu acredito”: Eu acredito em um Deus e Criador, um Cristo sofredor, [que] morreu para dar vida ao que crer; acredito na completa redenção, na divina intervenção, que há mais do que posso enxergar; acredito no poder da oração, que um dia verei a Sua mão.
Se essas duas últimas músicas que comentei são tão explícitas em sua fé em doutrinas que não prescreveram, é porque, como diz a letra, o compositor não se “envergonha de um Deus que me sustenta e mantém, sabendo quem eu sou e quem eu falho em ser”; é porque o cristão deve, “olhando o horizonte que não está tão longe, esperar no Deus que vai além”; é porque o fiel, “apesar das circunstâncias, palavras ou distâncias” e sabendo “que é difícil crer”, sabe também que é misericordiosamente “declarado justo pelo Seu poder”. Por isso, “escolho crer”.
Aquele “Lembra-te” também ecoa o “lembra-te do teu criador nos dias da tua mocidade”. E o que mais esses dois jovens estão fazendo nesse CD a não ser falando de sua fé jovialmente, com fundamentação teológica e sem irreverência ou trivialidade? Não é a isso que podemos chamar de uma coerente e atualizada introdução ao conteúdo bíblico?
Comentários
não sei se você já havia lido.
forte abraço, meu querido
eu parei com as pretensões semióticas (a revista de semiótica da USP publicou um artigo meu sobre uma música do jader santos, dois meses depois fui ler e nem eu entendia direito, rsrs). estou indo agora pelas beiradas da sociologia e da teologia da música.
sobre sua análise: i agree with many, many things. abs
forte abraço, meu caro
grato pela leitura.