Pular para o conteúdo principal

perdoa-me por não consumir


Logo após a II Guerra Mundial, o mundo estava falido, faminto e sem crédito. Mesmo o vigoroso parque industrial dos Estados Unidos via seu futuro ameaçado. Quem compraria os produtos fabricados pelos EUA? E onde os milhares de soldados que voltavam pra casa iriam trabalhar?

A solução veio de Victor Lebow, um consultor norte-americano especializado em varejo. A saída era a aceleração do ciclo de produção e consumo: “Nossa economia enormemente produtiva requer que façamos do consumo o nosso modo de vida, que convertamos a compra e o uso de mercadorias em rituais, que busquemos a nossa satisfação espiritual ou do nosso ego no consumo. Nós precisamos de coisas consumidas, destruídas, gastas, substituídas e descartadas numa taxa continuamente crescente” (Carta Capital, ed. 675).

E assim se fez. Houve tardes e manhãs e substituiu-se a “economia de abastecimento” pela “economia de consumo”. E o parque industrial “curtiu” muito tudo isso.

A média de durabilidade de 99% dos produtos comercializados nos EUA é de seis meses. Antigamente, as pessoas compravam bens duradouros. Hoje, precisamos retornar constantemente às lojas. Não para reclamar de defeitos do produto, mas para adquirir o mesmo produto agora com outra cor, outro tamanho, outro acessório. O tempo de fossilização de um telemóvel (o celular) ou de um automóvel se conta em lapse-time, o lapso de tempo das imagens aceleradas.

A esse processo de rápido envelhecimento dos produtos chamamos de obsolescência planejada. Parece teoria da conspiração, mas na verdade, foi uma solução bem prática para o mercado. A questão não era mais só abastecer/vender para pessoas que não tinham determinado produto. O negócio do século XX foi vender o mesmo produto várias vezes para as mesmas pessoas.

Nossa economia está organizada para vender produtos para a porcentagem da humanidade que é capaz de comprar. Claro que sempre vai ter gente que faz como fazem os países falidos do Euro: tomam empréstimos para pagar dívidas. Ou seja, são cidadãos e governos que vivem de acordo com suas posses, ainda que tenham que se endividar para fazê-lo!

O círculo produção-consumo viciou a população: o povo para de comprar, o setor industrial para de produzir, o governo diz “sim” ao lobby dos eletrodomésticos e das montadoras e lá vem de novo a gritaria dos comerciais de carro, fogão e TV. Quer pagar quanto?

Mas eu já tenho! Mas o seu não faz isso, nem isso, nem é assim! Mas eu não posso! Mas nós parcelamos em suaves prestações! E aí, mesmo sabendo que “suaves prestações” são duas palavras tão inconciliáveis quanto “puxe/empurre”, você leva o produto.

Já nos deram espelhos e vimos um mundo doente. Agora, nos dão cartões de plástico. E isso divide a doença em 24 vezes.

Mas se eu paro de ir às compras, a loja despede funcionários, e é mais gente que não irá mais ao shopping, e então as indústrias pedem um corte de juros ao governo, que corta os juros, o que me levará ao shopping, o que aumenta minha dívida no cartão, o que me fará parar de ir às compras, fará a loja demitir...

Parece até que a culpa pela falência mundial do capitalismo é minha. Endividado, vou lá quitar a honra do planeta. Digo ao atendente: “Perdoa-me por não consumir”. E pago. O gerente olha o débito quitado e me diz “Perdoadas estão tuas dívidas”. E saio. Uma voz difícil de atender me diz “Vai e não consumas mais”. E volto pra casa contrariado, mas aliviado. 

Comentários

Kelly M. disse…
Vc se inspirou no 'História das coisas'?!?!
Alessandra disse…
tb me lembrei "História das coisas" http://video.google.com/videoplay?docid=-7568664880564855303#

belo texto, "curti". Podemos estar tão ocupados em querer e ter e esquecemos de "ser".
joêzer disse…
kelly e alessandra, um mês atrás assisti esse curta da "história das coisas". deve ter vindo à tona meio inconscientemente na hora de escrever. o que me motivou a escrever foi uma matéria da Carta Capital dessa semana sobre consumo e meio ambiente. tks pela leitura!
Rogério - RJ disse…
Irretocável!
joêzer disse…
obrigado pela leitura, Rogério.

Postagens mais visitadas deste blog

o mito da música que transforma a água

" Música bonita gera cristais de gelo bonitos e música feia gera cristais de gelo feios ". E que tal essa frase? " Palavras boas e positivas geram cristais de gelo bonitos e simétricos ". O autor dessa teoria é o fotógrafo japonês Masaru Emoto (falecido em 2014). Parece difícil alguém com o ensino médio completo acreditar nisso, mas não só existe gente grande acreditando como tem gente usando essas conclusões em palestras sobre música sacra! O experimento de Masaru Emoto consistiu em tocar várias músicas próximo a recipientes com água. Em seguida, a água foi congelada e, com um microscópio, Emoto analisou as moléculas de água. Os cristais de água que "ouviram" música clássica ficaram bonitos e simétricos, ao passo que os cristais de água que "ouviram" música pop eram feios. Não bastasse, Emoto também testou a água falando com ela durante um mês. Ele dizia palavras amorosas e positivas para um recipiente e palavras de ódio e negativas par

paula fernandes e os espíritos compositores

A cantora Paula Fernandes disse em um recente programa de TV que seu processo de composição é, segundo suas palavras, “altamente intuitivo, pra não dizer mediúnico”. Foi a senha para o desapontamento de alguns admiradores da cantora.  Embora suas músicas falem de um amor casto e monogâmico, muitos fãs evangélicos já estão providenciando o tradicional "vou jogar fora no lixo" dos CDs de Paula Fernandes. Parece que a apologia do amor fiel só é bem-vinda quando dita por um conselheiro cristão. Paula foi ao programa Show Business , de João Dória Jr., e se declarou espírita.  Falou ainda que não tem preconceito religioso, “mesmo porque Deus é um só”. Em seguida, ela disse que não compõe sozinha, que às vezes, nas letras de suas canções, ela lê “palavras que não sabe o significado”. O que a cantora quis dizer com "palavras que não sei o significado"? Fiz uma breve varredura nas suas letras e, verificando que o nível léxico dos versos não é de nenhu

Bob Dylan e a religião

O cantor e compositor Bob Dylan completou 80 anos de idade e está recebendo as devidas lembranças. O cantor não é admirado pela sua voz ou pelos seus solos de guitarra. Suas músicas não falam dos temas românticos rotineiros, seu show não tem coreografias esfuziantes e é capaz de este que vos escreve ter um ataque de sonolência ao ouvi-lo por mais de 20 minutos. Mas Bob Dylan é um dos compositores mais celebrados por pessoas que valorizam poesia - o que motivou a Academia Sueca a lhe outorgar um prêmio Nobel de Literatura. De fato, sem entrar na velha discussão "letra de música é poesia?", as letras das canções de Dylan possuem lirismo e força, fugindo do tratamento comum/vulgar dos temas políticos, sociais e existenciais. No início de sua carreira musical, Dylan era visto pelos fãs e pela crítica como o substituto do cantor Woody Guthrie, célebre pelo seu ativismo social e pela simplicidade de sua música. Assim como Guthrie, o jovem Bob Dylan empunhava apenas seu violão e ent