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Por que o gospel conquistou o Brasil


Por que o gospel conquistou o Brasil? Essa é a pergunta feita por uma revista semanal. Mas é bom deixar claro que o gospel não conquistou o Brasil. Na verdade, o gospel conquistou os evangélicos e o bolso falido do mercado fonográfico secular. E isto é um feito bastante comemorado. São evangélicos, e aqui agrego protestantes e pentecostais sob o mesmo guarda-chuva, os principais consumidores da música gospel. Quem compra produtos do Padre Marcelo Rossi dificilmente vai adquirir produtos com a marca evangélica. E vice-versa. Espiritualistas, umbandistas, budistas, judeus e muçulmanos também não são fazem parte do público de Regis Danese e Diante do Trono.

As evidências financeiras demonstram a força econômica do segmento evangélico. Candidatos a cargo legislativo não deixam de acenar para as igrejas evangélicas. Os meios de comunicação, atrelados a grandes gravadoras, promovem artistas cristãos. As universidades se debruçam sobre esse tema. Então, mesmo sem estar à altura de ser convidado a responder publicamente essa questão, nem a convite do meio secular nem do meio evangélico,  vou sugerir algumas respostas e explicações.

A explicação estatística: o fenômeno do crescimento evangélico não é uma dádiva de toda denominação cristã. O número de católicos se reduz a cada censo e os protestantes têm crescimento moderado. As igrejas do pentecostalismo histórico, como a Assembleia de Deus, também não crescem em ritmo espantoso. A explosão demográfica ocorre no ramo neopentecostal (das igrejas Universal, da Graça de Deus, do Poder de Deus, Renascer, Sara Nossa Terra e muitas outras cujo nome começa com Comunidade Evangélica acrescido do bairro onde se localiza). Maior número de fiéis implica maior número de consumidores. Mas não existe aumento de consumo sem aumento da riqueza do país. Precisamos de mais justificativas.

A explicação econômica: Essa expansão religiosa começou principalmente em regiões urbanas com maior índice de pobreza e com menor escolaridade. Daí a argumentação de que estas igrejas exploram a necessidade de conforto espiritual e material ao prometerem bênçãos assim na terra como no céu: o fiel não precisa esperar para ter uma carruagem no céu; ele já pode ter seu carrinho aqui e agora. A teologia da prosperidade encontrou um terreno fértil na teoria econômica da prosperidade do governo Lula. O sucesso de um gigantesco plano de transferência de renda, como o Bolsa-Família, possibilitou a entrada de milhões de pessoas no mercado de consumo e a saída de outros milhões da miséria total. Mesmo longe do crescimento chinês, a economia brasileira cresceu o suficiente para animar o circuito do mercado: aumento de consumo - aumento de produção - aumento de empregos e mais consumo etc. No campo evangélico, surgiu um grande nicho consumidor de produtos de moda e música. Aumentou-se a produção musical, gerou-se mais renda e emprego na indústria de linha gospel, o que levou à organização de um evento comercial de grande porte como a ExpoCristã. Mas há velhos e novos ricos nessas igrejas; só a economia não explica tudo.

A explicação sociológica: desde sua inserção no Brasil, o protestantismo e o pentecostalismo afastaram-se da cultura musical popular brasileira. Os primeiros conversos eram de origem europeia e também não compartilhavam o gosto pela música tupiniquim. Depois os hinos passaram a ser cantados em português, mas eram, em sua maioria, versões de hinos norte-americanos e europeus. Era uma época em que o país era oficialmente católico e qualquer outra religião era vista com suspeita e preconceito. Junte-se a isso o sectarismo religioso e o elitismo musical e temos uma igreja cunhada em forte repressão a comportamentos individuais e objetos culturais (penteados, vestuário, música popular, futebol, filmes).
Desde o final do século 20, há maior espaço na sociedade para o exercício da individualidade e da identidade cultural local. Os jovens reúnem-se em torno de gostos e idiossincrasias comuns, gerando as chamadas "tribos urbanas" dos surfistas, dos metaleiros, dos skatistas etc.  A cultura tornou-se um bem de consumo e o marketing uma ferramenta indispensável. Tudo isso repercutiu no campo religioso. Inclusive a crise de liderança hierárquica e institucional, o que, no campo denominacional, gerou uma infinidade de novas igrejas. Os novos comportamentos sociais fizeram com que as igrejas remodelassem seus métodos de evangelismo. A opção por mudar a forma sem alterar o conteúdo pode ter efeitos discutíveis, mas aproximou a mensagem cristã central de salvação dos marginalizados social e culturalmente. A música, formato de atração preferencial, conservou a mensagem central evangélica na letra e abriu-se para os antigos e novos gêneros musicais populares.

A explicação estética-cultural: se as pessoas se sentem mais livres para expressar sua fé segundo a cultura musical que entendem e apreciam, de nada mais adianta um pastor dizer que “Deus não gosta dessa música”. Até porque um irmão mais atento vai perceber que não há uma só linha na Bíblia indicando qual o estilo musical da preferência divina [Deus pode ter suas preocupações estilísticas, mas a Bíblia ressalta mais Seu descontentamento quanto ao coração hipócrita do adorador]. Durante décadas, a música foi administrada na igreja por pessoas que tinham formação musical clássica/erudita, o que teria determinado o modelo das composições litúrgicas. Às vezes, sem nenhum apoio escriturístico, eles associavam a música clássica ao bom gosto e, como o culto evangélico era tradicionalmente formal e solene, em algumas igrejas esse modelo musical se tornou “o gosto de Deus”.

A sociedade atual, uma vigilante da liberdade individual, fez triunfar a democratização musical. Não só os formados em conservatórios podiam compor música cristã, mas o sacerdócio musical passou a ser de todos os crentes. Logo, a linguagem e a forma seriam diversificadas. As pessoas não precisavam mais louvar a Deus com a música “importada”, de letras enciclopédicas e de estilo parnasiano. Nem ter voz formalmente educada. A contextualização da linguagem vista em livros e revistas (como a maneira apropriada de falar para faixas etárias diferentes) passou a ser ouvida e cantada. Além disso, por muito tempo se teve vergonha de ser brasileiro e a cultura popular era demonizada. Os novos evangélicos têm orgulho da cultura nacional e usam a cultura brasileira para celebrar sua conversão, sua nova vida e seu Deus. Há mais gêneros musicais sendo tocados, mais pessoas que esperam ouvi-los e mais empresários querendo abocanhar essa fatia do mercado.

A segunda parte desse arrazoado, composto de explicações mercadológicas, midiáticas e teológicas, você pode ler clicando aqui.

Comentários

Alinnie disse…
Falar das outras denominações é fácil. e o que dizer do comportamento de alguns nomes da música adventista como Leonardo Gonçalves e Alessandra Samadelo (não vou nem elencar a Daniela Araújo, porque não sei qual a sua religião)
joêzer disse…
Alinnie,
meu texto não está julgando comportamento de artistas em particular. Estou tentando responder a pergunta "Por que o gospel conquistou o Brasil?" e isso inclui examinar o contexto maior e mais profundo do que está acontecendo dentro e fora das igrejas cristãs.
E veja também que não menciono nenhuma denominação em particular. Estou tratando de evangélicos em geral (protestantes - adventistas incluídos - e pentecostais).
E falar da religião dos outros é fácil. Analisar e tentar ser imparcial é que é difícil. É o que tentei ser aqui e desculpe se isso lhe soou ofensivo. Não foi a intenção deste texto.
E se você reler com cuidado verá que não tem nada de agressivo ou crítico sobre fulano ou sicrano.
@CeliaWiczneski disse…
Interessante e instigador seu post. Gostei de ler!
Abraço,
Élen Souto disse…
Claríssima sua abordagem, amigo! Não está criticando esta nem aquela denominação. Aliás, não está criticando ninguém, apenas tentando analisar os fatos. ;)
joêzer disse…
Celia, volte depois para ler a segunda parte. Obrigado!

Ellen, muito obrigado por ler e compartilhar!
Alysson Huf disse…
cara, você escreve bem pacas.e esse texto me deu muita vontade de mergulhar em pesquisas sobre o assunto. parabéns e obrigado pelo blog.
joêzer disse…
Alysson,
você vai encontrar boas coisas já escritas sobre o assunto. pode ir fundo! obrigado pela leitura.
akporta disse…
Ótima análise. Apenas uma dica: verifique o uso correto da crase (à). No mais, espero poder ler a segunda parte!
joêzer disse…
É verdade. Inseri crase antes de substantivo masculino, antes de plural, etc. Obrigado pela dica de gramática e pela leitura!
Unknown disse…
Sr. Joêzer,
Sou redatora da Revista Keyboard Brasil e procurando sobre o mercado da música gospel no Brasil, me deparei com seu texto. Aliás, excelente texto, recheado de comentários tecendo inúmeros elogios. Nossa revista digital é recente (estamos lançando a 3ª agora em outubro), mensal e gratuita ( www.keyboard.art.br ) Porém, nossa editora possui 27 anos no mercado. Gostaria de sua autorização para colocar seu texto (1ª e 2ª partes) na íntegra para a próxima edição. Caso afirmativo, favor enviar sua foto em alta (300 dpi), juntamente com seus dados para o e-mail de contato: contato@keyboard.art.br Desde já agradeço. Atenciosamente, Heloísa Fagundes.
Unknown disse…
Sr. Joêzer,
Sou redatora da Revista Keyboard Brasil e procurando sobre o mercado da música gospel no Brasil, me deparei com seu texto. Aliás, excelente texto, recheado de comentários tecendo inúmeros elogios. Nossa revista digital é recente (estamos lançando a 3ª agora em outubro), mensal e gratuita ( www.keyboard.art.br ) Porém, nossa editora possui 27 anos no mercado. Gostaria de sua autorização para colocar seu texto (1ª e 2ª partes) na íntegra para a próxima edição. Caso afirmativo, favor enviar sua foto em alta (300 dpi), juntamente com seus dados para o e-mail de contato: contato@keyboard.art.br Desde já agradeço. Atenciosamente, Heloísa Fagundes.

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