As congregações evangélicas, de
um modo geral, foram acostumadas a um modelo musical de melodias firmes, poesia simples e teologia direta. Isso pode explicar o apreço pelos dois primeiros CDs de Leonardo Gonçalves, nos quais há músicas que se consolidaram
no repertório evangélico dos últimos anos (“Getsêmani”, “Volta”, “Moriá”, “Ele
Virá”, são algumas).
O 1º CD, "Poemas e Canções", apresentava temas gerais do cristianismo. O segundo, "Viver e Cantar", pôs em sequência teológica as doutrinas cristãs centrais. O terceiro, "Avinu Malkenu", relaciona a tradição musical e teológica judaica à compreensão teológica cristã. O CD “Princípio e Fim” diverge dos anteriores nos aspectos musicais e poéticos. E também é diferente no viés teológico. Vamos aos aspectos musicais.
Ouvindo musicalmente
As músicas deste CD se adequam mais à reflexão pessoal do que à performance pública, isso chega a ser reconfortante. Esta é uma produção que não buscou a fórmula do hit gospel, e para isso renunciou (talvez deliberadamente) à familiaridade melódica.
Nesse CD, as melodias estão mais assentadas, lentas, reflexivas. Nos trabalhos anteriores, as músicas exigiam muita potência vocal e os intervalos entre as notas exibiam maiores saltos entre as notas graves e as agudas. Neste, há mais ênfase na região média da voz.
Percebi também um fator musical que não sei
se todos vão entender devido à forma pouco eficiente da minha explicação: há uma demora em resolver as expectativas criadas pelos acordes de tensão e
repouso. Por exemplo: o refrão da canção “Novo” [“mas à meia-noite o céu se
abre...”] tem um ostinato (repetição de grupos de notas) que adia longamente a resolução
da tensão. É um efeito interessante e que se relaciona com a letra, mas soa
pouco familiar para uma parte dos ouvintes, para quem o ostinato pode resultar muito prolongado.
Que canções têm essa
característica?
“Sublime” – que tem belos achados na letra, como no verso “Compreendo que o eterno lar começa no
momento em que vivo para Te encontrar”;
“Viver o amor” – o refrão (“estender a mão / partir o pão”) tem uma melodia flutuante e seu final tem uma sequência de acordes que criam um efeito suspensivo permanente.
A versão de “Eu acredito” – a
sequência de acordes do piano desarticula a fluidez da versão original de
Tiago Arrais e cria outra atmosfera: suspensa, ondulante, resolvida de um modo
inesperado.
“Jamais” e “Princípio e Fim” – as
duas canções dialogam em vários aspectos. Experimente apenas ler suas letras e você perceberá que os conjuntos de versos não estão ligados por uma
narrativa, uma história. São como quadros justapostos que somente a visão do
todo poderá apresentar coerência.
Assim como o letrista não estabeleceu
uma relação convencional entre os versos, a melodia e a harmonia também não
seguem as resoluções melódicas e harmônicas comuns. Essas duas músicas soam mais como comentários sobre a compreensão da eternidade e da
infinitude de Deus e menos como canções sobre o encontro final com Cristo no céu,
Não ouvimos as afirmações seguras
sobre a volta de Jesus, como em “Ele Virá”, por exemplo. O aspecto esperançoso
e triunfante dessa música deu lugar à espera mais contida – “a esperança
pressupõe a espera, logo vem o Rei”, trecho da canção “Novo”, é um sinal. Não é
triunfalista, pelo menos não de acordo com o modelo comum da música evangélica
e, particularmente, da música adventista.
O tema da volta de Jesus costuma
gerar expectativas musicais afirmativas ou também de grandiosidade (final orquestral, trompetes no
fortíssimo). No entanto, o instrumental de cordas que se segue
após a última frase da última música do CD dá uma ideia da opção pela
contenção. A música parece encerrar com reticências. Talvez a ausência de um ponto final não atenda às expectativas convencionais do ouvinte.
Seria este, então, um CD que
agradaria mais aos músicos? Não sei responder. Mas eu diria que essa produção
deveria ser ouvida com atenção pelos arranjadores gospel.
Ouvindo teologicamente
Olhando agora para as letras, e mesmo não passando de um musicólogo que aprecia estudos em religião, vou arriscar algumas
especulações teológicas.
Os poemas e canções do CD me
sugerem que eles estão dentro de um conceito duplo em relação ao título dessa
produção.
Princípio é o começo de todas as
coisas. No entanto, diferente do CD “Viver e Cantar”, não há um relato
cronológico da história da redenção. Seu começo não está no gênesis,
mas nos eventos do apocalipse. Vejamos:
A segunda faixa do CD chama-se
“Tsion” (a 1ª é um prelúdio instrumental ligado à 2ª) e trata do esperado encontro entre
o salvo e o Salvador. O primeiro verso da letra diz
“hoje acordei em sonho para ver o que é real”. Como sabemos, os sonhos não têm
começo definido (é raro lembrar o início de um sonho) e é só a realidade
que põe um fim aos sonhos.
A terceira canção é “Novo”. O
refrão fala da vinda de Jesus nos céus e pergunta: "a luz que enche toda a terra
é o Rei?" A
interrogação é cantada por Leonardo com a entonação vocal para cima na palavra
“Rei?”. Depois, essa frase será repetida, mas, na letra que consta no encarte
do CD, há um ponto de exclamação no final (“a luz que enche toda a terra é o
Rei!”). A voz faz uma entoação para baixo na palavra “Rei!”, como que afirmando
e não perguntando.
Os eventos do apocalipse são
cantados: “a canção do Cordeiro vai ressoar como
o alto mar” (como o som de muitas águas); “tudo novo se fez”.
Há referências à nova terra (algo que é pós-apocalíptico) nas bonitas rimas da música
cantada em inglês, “There”, que fala da cidade celeste de Jerusalém e da importância dada a presença de Cristo ali. Em “Sublime”,
há um coro que canta repetidamente “Jerusalém”.
Essa última canção diz: “[...] vou Te
encontrar / quando não sei / um dia, eu sei / estarei no meu lugar”. O que
ainda não foi realizado, e carece de espera e esperança, se realiza no final da
música: “Hoje encontrei, em Ti encontrei, encontrei o meu lugar”. Ainda não é o encontro no céu, mas a percepção de encontrar a Deus espiritualmente e localizar-se emocional e intelectualmente, como que colocando um ponto final na peregrinação em busca do sentido da existência.
Isso está de acordo com o texto
de apresentação do CD, escrito por Leonardo: “o reino de Deus vai existir
porque já existe. [...] um dia vai existir plenamente. Já, mas não ainda...”
Preceito e Finalidade
Uma segunda relação das músicas com o
título do CD penso que está num plano mais profundo (e são apenas especulações deste
escriba, e podem não ter nada a ver com as reais intenções do produtor).
Princípio também significa preceito, teoria, diretrizes que regulam a vida. Os princípios cristãos saltam aos ouvidos nas canções.
Princípio também significa preceito, teoria, diretrizes que regulam a vida. Os princípios cristãos saltam aos ouvidos nas canções.
Princípios de fé: na canção
“Novo”, canta-se a crença na ressurreição
de Cristo (“minha fé não vê um Cristo morto, mas que ressurgiu”), a
ressurreição dos que creem em Cristo (“acordam os que dormem no Senhor”), e a
volta pessoal de Jesus (“todo olho O vê”).
Princípios da sola scriptura: são
citadas várias passagens bíblicas, algumas ipsis litteris – Mateus 25:21 (em “Tsion”), o
salmo 121:1 (“Novo”), Coríntios 13:2 e algumas bem-aventuranças (em “Bondade”),
Isaías 58:6 (“Viver o amor”).
A lei como princípio: "acredito
que Sua lei está dentro do meu coração" (na música “Eu acredito”); "sempre
obedecer à lei do Seu coração" (“Viver o amor”), "guardar suas leis" (“Mente e
coração”).
Fim quer dizer final das coisas. E
também é um termo que pertence ao domínio da escatologia cristã, o estudo dos últimos eventos.
Fim também significa finalidade, objetivo. A finalidade da criação e da
redenção está dentro do que se chama teleologia, o conceito de propósito do
universo. O propósito (o telos) do evangelho é anunciar tanto o fim/propósito da vida quanto o começo/finalidade de uma nova vida. As canções do CD "Princípio e Fim" são perpassadas por esse princípio, por esse propósito.
O telos, a finalidade da vida do
cristão na terra inclui o amor pelos seus semelhantes, abrangendo aqueles que,
como diz o texto de apresentação do CD, “não compartilham de nossas perguntas,
que dirá de nossas respostas”. Por isso, a música “Bondade” (preciso a bondade
partilhar), por isso “Viver o Amor” (estender a mão, partir o pão; nunca mais
me esconder do meu semelhante).
Já fui longe demais em minhas
especulações teomusicológicas e agradeço a boa vontade do leitor que chegou até aqui.
Eu encerro com esse verso da canção "Mente e coração":
Quero entender o sentido / quero
sentir o entendido: o cristão quer compreender o significado e o propósito das
coisas. Mas assim que compreende, ainda que em parte, pois lhe é impossível a
totalidade deste lado da eternidade, ele precisa vivenciar o que entendeu.
Razão para entender, sentimento para incorporar. Letra para compreender o sentido, música para expressar o entendido.
Em relação a essa canção, talvez várias pessoas deem
mais atenção ao arranjo musical do que à teologia contida na letra. É claro que ritmos e melodias às vezes podem nos distrair dos santos propósitos. Mas
também penso que não é sábio usar a preferência musical como régua para
medir a espiritualidade pessoal. O amor é um princípio e a salvação é um fim, mas a
música é um meio.
Comentários
A frase que me chamou mais atenção em todo o CD foi essa de "Mente e Coração" antes mesmo de ouvir a música, quando o Leonardo fez uma pergunta no FB.
Caio, grato pela apreciação.
Alysson, tks.
Mostra o DNA musical e faz um "teste de paternidade" teologica;
Esta é somente uma reflexão minha espero não seja uma heresia..., de qualquer forma, este artigo ou a compreensão que tive dele me motivou a escrever o que segue;
Depois de ler esta analise ao finalizar a ultima oração do artigo, de repente veio um pensamento a minha mente;
A de que cada ser humano nasce como uma canção, de letra e musica única carimbada pelo criador, uma abalança perpetua que acompanha o adorador pelo resto da sua vida, como uma melodia que o sustenta e o eleva de volta a seu criador nos momentos difíceis, e, nos momentos de alegria o embalam ao louvor de gratidão e e explosão de ações em bem dos que o rodeiam;
Esta canção impressa na alma de todo ser humano, parece misturar-se com as canções que ouvimos de diferentes fontes, pode ser que por isso a percepção musical de cada um seja uma experiência particular única, enquanto a percepção musical coletiva dos ouvintes num culto, se junta em centenas de louvores brotando do coração para a origem de todas as mas belas melodias a voz do criador, numa oferenda de louvor que sobe em fortes turbilhoes de volta a quem o deu no principio;
Abraços
Max
grande abraço
abraço mestre Joezer..
só usei um termo técnico, como "colcheias", "ritornello", "cluster" etc.
o amigo entende que falei pouco de música e mais de teologia, certo? um dia sentamos e falamos da música.
abs