Esse texto visa responder algumas
questões que circulam em igrejas evangélicas, como o efeito da música sobre o
ser humano e a definição de música sacra. Os temas tratados aqui estão comentados
de forma resumida.
* * * * *
A música é moralmente neutra?
Estruturas (como as notas ou
estilos musicais) e instrumentos musicais não têm moral intrínseca, são
moralmente neutros como uma faca ou uma pedra. Somente as associações culturais
do ouvinte podem formar um juízo de valor e conferir moralidade a uma obra
musical. Aliás, estes juízos nem sempre fazem parte das intenções do
compositor. Por exemplo, a Nona Sinfonia composta por Beethoven foi inicialmente
considerada uma expressão de um ideal ético de fraternidade universal, mas,
110 anos depois, os nazistas utilizaram a mesma obra como objeto de propaganda
de superioridade racial.
E quando a música não é
instrumental, mas tem letra e referências diretas ou indiretas a uma situação
extramusical? Os versos das canções podem agradar a um e desagradar a outro,
mas nem todos são afetados ou influenciados por mesmos versos que escutarem.
Nem todo mundo que cantava “Quem
sabe faz a hora não espera acontecer” foi lutar contra a ditadura militar no
final dos anos 1960, nem todo mundo que canta “Verás que um filho não foge à
luta” está realmente convicto desse amor pela pátria. Portanto, se há algum problema em relação à
música, este problema não está no que a música faz conosco, mas no que
escolhemos fazer com a música. E para fazer algo a partir da música, é necessário
ENVOLVIMENTO e PREDISPOSIÇÃO.
Esses dois aspectos estão ligados
ao fazer cultural de um indivíduo ou grupo social. Sem envolvimento e
predisposição, uma pessoa não é capaz de interagir com as situações evocadas
pela música. É por isso que só participa ativamente de um ritual com música de
umbanda quem se predispõe a participar. Caso contrário, quem mora próximo a “terreiros”
entraria em transe toda vez que a música do ritual fosse tocada.
A reação à música é de ordem social, mas também é de apelo
individual. Nem todos se sentem compelidos a cantar o Hino Nacional do mesmo
modo que cantam o “Parabéns pra você”. Enquanto uns cantam e louvam a Deus animadamente
na igreja, outros ficam entediados. O “poder da música” é superestimado quando
não leva em conta a extrema variabilidade de respostas individuais à música.[1]
Assim, há pessoas que se sacodem
à primeira batida de um funk ou pagode e outros que fecham o ouvido e execram a
música. Mais uma vez, é preciso o envolvimento com determinado elemento
sociocultural e predisposição pessoal.
Esses fatores revelam que 1) não
somos apenas um amontoado de células e neurônios passivamente à espera do
próximo som musical que nos corrompa ou nos edifique; e 2) não somos criaturas
cuja mente e coração são transformados pela audição de estilos musicais e pela
sugestão de letras. Se essa conexão fosse tão irresistível, os cidadãos que só
escutam música cristã seriam os mais mansos, puros e santificados da
comunidade.
O primeiro pensamento mencionado acima está mais próximo de
uma noção evolucionista que advoga que nossas células e hormônios ditam as
regras e comportamentos. O fenômeno acústico e musical tem efeitos em nossa
fisiologia? Sim. Mas não somos apenas resultados da ação biológica; mais que
isso, somos seres culturais. Robert Lundin, estudioso da psicologia da música,
avalia que boa parte das nossas reações musicais são determinadas culturalmente.[2]
Oliver Sacks, neurologista autor
de “Alucinações Musicais”, diz que ainda não é possível determinar até que
ponto as reações emocionais de um indivíduo à música dependem mais da própria
fisiologia ou mais da cultura (entrevista a O
Globo, 29/9/07).
O segundo pensamento está ligado
à teoria grega clássica do ethos que atribuía à música a capacidade de modelar o
caráter. Esse conceito deriva da
ideia de que a estética e a ética possuem uma natureza e uma função comuns.
Para alguns filósofos gregos (Platão e Aristóteles inclusos), haveria uma correlação entre as cadências/progressões musicais e os movimentos psíquicos capazes de efetuar mudanças na conduta moral humana. Por exemplo, ver e ouvir o que é belo e harmonioso modelaria a alma humana segundo o equilíbrio e a justiça.[3]
Nem todos os filósofos, como o pensador greco-romano Sextus Empiricus, e teólogos concordavam a relação causal entre música e natureza humana. O apóstolo Paulo diz que não é a simples contemplação de uma obra humana que transforma o ser humano - vale notar que em II Coríntios 3:18, o apóstolo Paulo parte
de um ideal grego familiar ao seu contexto para introduzir um renovado conceito espiritual.
A ideia de que os sons musicais (sem letra) têm o poder implícito, ou "oculto", de causar mudanças no caráter e na vontade humanas cruzou a filosofia helênica e se introduziu o pensamento de autores cristãos de várias épocas, de Agostinho à Calvino até os nossos dias.[4]
A contemplação do belo não é capaz de modelar o bom caráter, como se viu na preferência musical nazista por obras de Beethoven e Richard Wagner. O que, de fato, é capaz de mudar um indivíduo, segundo a Bíblia, é a contemplação/audição em correlação com a livre obediência. É preciso disposição e obediência para seguir o que se está ouvindo, inclusive para se atender à “voz divina”.
Então, se não há moralidade inerente à música (música sem letra), qualquer estilo pode ser considerado sacro? “Não existe música particularmente sacra”, como diz o líder evangélico Rick Warren?
[1] Ver Brown, Elizabeth; Hendee,
William. “Adolescents and their music”. Journal
of the American Medical Association, nº 262.
[2] An objective psychology of music, p. 100.
[3] Ver mais em Nasser, Najit, O ethos na música grega. Boletim do CPA (Unicamp), n. 4.
[4]McKinnon, James, Early Christian Literature, 1987.
[3] Ver mais em Nasser, Najit, O ethos na música grega. Boletim do CPA (Unicamp), n. 4.
[4]McKinnon, James, Early Christian Literature, 1987.
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