Esse texto visa responder algumas
questões que circulam em igrejas evangélicas, como o efeito da música sobre o
ser humano e a definição de música sacra. Os temas tratados aqui estão
comentados de forma resumida. Se persistirem os sintomas de interesse, procure os especialistas disponíveis nos melhores livros.
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Encerrei a 1ª parte deste texto (leia aqui) com a questão: “Se não há moralidade inerente à música (música sem letra),
qualquer estilo pode ser considerado sacro?” Então, “é a letra que torna uma
canção sagrada, e não sua melodia”, como diz o pastor Rick Warren?[1]
No entanto, não é a letra que de
fato sacraliza qualquer melodia, como alega Warren. Se fosse assim, a canção
popular “Foi Deus Quem Fez Você”, cantada por Amelinha, seria música sacra.
Essa canção mostra Deus como Criador, e ainda que faça menções ao sagrado, seu
uso não é de ordem religiosa ou litúrgica. O Réquiem de Mozart é considerado
música sacra (erudita), mas em 1903, o papa Pio X decidiu que a bela obra de
Mozart não era apropriada para a liturgia tradicional. A Ave Maria, de
Charles Gounod, é considerada música sacra, mas muitos protestantes achariam
que ela não é adequada para o culto.
O que se pode deduzir é que há
músicas com alto teor de sacralidade, mas sua função não era e nem se tornou
litúrgica ou evangelística. Certas músicas podem até possuir uma função sacra
na sua origem, mas nem toda denominação religiosa as considera adequadas para sua
forma ou estilo de culto. Então, não, a afirmação de Rick Warren de que a letra sacraliza a música não está correta.
Portanto, o que confere sacralidade a uma
música é sua função. Nesse sentido, determinadas músicas ganham uma função e um
propósito considerados religiosos e sagrados. Como vimos na primeira parte
deste texto, melodias sem letra são usadas de acordo com a conveniência religiosa
e a ideologia política e cultural por um determinado grupo social.
Podemos dizer que uma melodia (dependendo do contexto para o qual é
transferida) não é sacra por si mesma - nesse caso, a afirmação de Warren está parcialmente correta. A rigor, melodias costumam ser sacralizadas por alguém ou um grupo religioso em vez de serem sacras por sua própria natureza. Como veremos agora, um dado grupo
costuma modificar o sentido e a função original de melodias e estilos visando o
avanço de seu projeto evangelizador ou reformador.
O reformador Martinho Lutero
atribuiu uma função sacra a algumas melodias e estilos provenientes de
contextos seculares, como as volkslieder,
baladas populares, e as hoflieder,
baladas ligadas às cortes.[2]
Alguns dos corais luteranos (como se denominavam os hinos) tinham uma melodia
ou texto originário do catolicismo medieval e Lutero adequava o texto ou a
música à teologia da Reforma. Assim, não era só a mensagem que era sacralizada,
mas em muitos casos, o que já era sacro em um contexto era ressacralizado ou
refuncionalizado (ganhava nova função) em outro contexto religioso.
A adaptação de música profana
para uso sacro era o princípio da prática chamada contrafacta. Um exemplo
conhecido é a adaptação da melodia de Leo Hassler Mein Gmüth ist mir verwirret
(Minha alma está transtornada pelos encantos de uma terna donzela) para o texto
religioso Herzlich thut mich verlagen (De todo o coração anelo) e posteriormente adaptada para texto O Haupt voll Blut und Wunden (Ó fronte ensanguentada),
presente no oratório Paixão Segundo S. Mateus, de J. S. Bach, e também em hinários
protestantes.[3]
Na segunda metade do século 19, a
tranquila canção “Old Folks at home”, de Stephen Foster, era um grande sucesso
popular. Isso não impediu que ela recebesse um texto cristão e que Urias Smith,
com a chancela de Tiago White, inserisse esta música no hinário adventista de
1855.[4]
A nova função da canção era ressaltar na nova letra a esperança de um lar no céu.
A nova função da canção era ressaltar na nova letra a esperança de um lar no céu.
Estilos próprios de desfiles
militares, como a marcha, tiveram sua associação original com a guerra e com o
patriotismo convertida para a uma nova função: a comunicação de ideias como “batalha espiritual” e “pátria
celeste”. Após a Independência Americana, o estilo marcial serviu à mentalidade
evangélica que reforçava o combate às hostes inimigas no plano espiritual.
Processo semelhante ocorreria com
as composições de Ira Sankey, músico que acompanhava o evangelista Dwight
Moody. Sankey aproveitou o interesse popular pelo ritmo ternário da valsa e
compôs “Tal qual estou”, “Sob suas asas” e outros cânticos para os momentos de
louvor antes do sermão e para o apelo pastoral.
As religiões não atuam num vácuo sociocultural. Elas interagem constantemente com as novas sonoridades musicais que vão surgindo no espaço social, seja em caráter de adoção ou rejeição, quase sempre em acordo com seu projeto evangelizador e reformador. Assim, várias igrejas evangélicas passaram a se valer da formação vocal e estilística dos quartetos de
barbearias (barbershop quartets), formados por negros livres que tinham tempo
para cantar entre um corte de cabelo e outro – fenômeno semelhante ocorreu no
Brasil no final do século XIX, com a diferença que a música tocada aqui era
principalmente instrumental.
Esse fenômeno se repetiu quando a
canção pop francesa de Françoise Hardy, Tous
les garçons et les filles, nos anos 1960, passou a ser cantada em várias igrejas como “Cativar é amar /
é também carregar / um pouquinho da dor / que alguém tem pra levar” (a parte
final da letra – “responsável tu és / pelo que cativou” – revela uma curiosa
inserção de expressões do livro “O pequeno príncipe”).
Com base nesses exemplos de sacralização e refuncionalização que citei, quer dizer que basta dar uma
função sacra à música para que ela seja adequada ao culto ou ao evangelismo, ou
mesmo à comunhão individual?
A relação não é assim tão direta,
pois só a refuncionalização não basta, ainda que haja antecedentes históricos.
Não é porque determinado processo foi bem sucedido num dado momento histórico
que ele se repetirá com sucesso em outra época. Agir dessa forma é deixar de
perceber as mudanças de mentalidade e de contexto que vão se estabelecendo ao longo do tempo. Não é coerente transferir uma prática do passado sem antes conferir criticamente o
contexto do presente.
Curiosamente, alguns dos que
defendem a sacralização irrestrita de estilos baseando-se em práticas dos seus
pioneiros religiosos, ignoram ou esquecem que os músicos religiosos do passado
também tinham restrições a determinados estilos musicais. Vale notar que “Old folks at home” foi utilizada, mas por outro lado não se conhecem versões cristianizadas do folk
dançante “Oh Susannah”, ambas de autoria de Stephen Foster.[5]
Inserir uma letra religiosa na
canção “We are the world” ou no tema musical do filme Titanic (1997) pode lhe dar propósito sacro, mas dificilmente
estarão apropriadas para o contexto sacro, por exemplo, da tradição do culto protestante. Os versos “Você não vale nada mas eu gosto de você” podem ganhar
propósito sacro, mas aliados ao estilo da música original causarão ambiguidade
e desvios de atenção. Provavelmente, soaria como uma sátira e não como uma
declaração alegre de Deus para o pecador.
Ampliando nossa discussão, o
aspecto sagrado de uma música não reside num hino ou numa letra ou apenas na
nova função de um estilo musical. A sacralidade é proveniente de convenções
estabelecidas com base em critérios e tradições de um grupo social. Cada
igreja, de forma geral, estabelece esses critérios baseados em sua teologia e
também em sua forma habitual de lidar com inovações musicais. São essas convenções,
por exemplo, que orientam a seleção do repertório para o canto congregacional
(hinários e CDs institucionais).
No plano individual, nem sempre a
filosofia institucional está pareada com o pensamento dos leigos. O que se
planeja nos escritórios não é adotado automaticamente pelos membros, que
costumam contrapor o ideal institucional ao plano de sua vida movida por
práticas e consciências independentes. Nesse sentido, as distintas crenças e
teologias que trafegam nas várias igrejas têm a capacidade de gerar diferença
na composição e na aceitação das músicas sacras.
Em relação à música, o processo não é diferente, pois
cada pessoa possui seu repertório musical que lhe toca individualmente. Esse
repertório foi formado por meio de vivências coletivas e experiências
individuais, em interação com sua constituição fisiológica, com sua
personalidade e com sua cultura. É por isso que, o que é musicalmente e
espiritualmente negativo para um indivíduo, pode ter um efeito positivo em
outro.
Por último, há uma historinha
circulando por aí que atestaria a suposta capacidade que o funk “Céu” (versão gospel do funk
“Créu”) teve de converter uma pessoa ao cristianismo. Se esta história não for
mais uma lenda evangélica urbana, a admissão da eficácia espiritual daquela
canção dá margem para dizer que a canção “Eye of the Tiger” levou uma pessoa a
se tornar boxeadora, ou que a audição de “Born this way”, de Lady Gaga,
fez uma pessoa ser menos preconceituosa.
Sem subestimar o efeito moral que pode ter a repetida audição de letras que glamourizam atitudes contrárias aos valores cristãos, e sem exagerar o efeito da contínua escuta de músicas que reforcem os valores do evangelho, a alteração de conduta moral ou as mudanças de caráter estão além da simples audição musical. É preciso sempre envolvimento e predisposição. Se não fosse assim, todos se renderiam ao apelo de uma música no final de um sermão. Inclusive nós, os cristãos.
Sem subestimar o efeito moral que pode ter a repetida audição de letras que glamourizam atitudes contrárias aos valores cristãos, e sem exagerar o efeito da contínua escuta de músicas que reforcem os valores do evangelho, a alteração de conduta moral ou as mudanças de caráter estão além da simples audição musical. É preciso sempre envolvimento e predisposição. Se não fosse assim, todos se renderiam ao apelo de uma música no final de um sermão. Inclusive nós, os cristãos.
[1] No
livro Uma Vida com Propósitos, Warren escreve: “Não existe nada como música
“cristã”; existe apenas letra cristã. É a letra que torna uma canção sagrada, e
não a melodia. Não existem melodias espirituais. Se eu tocasse para você uma
música sem a letra, não haveria como saber se é uma canção “cristã”’.
[2] Ver Carl Schalk, Lutero e a
Música; Friedrich Blume, Protestant church music: a history, p. 29-35.
[3]
GROUT, PALISCA, História da Música Ocidental, p. 279.
[4] Nix, James. Early advent singing, nº 22.
[5] Em
português, o refrão de “Oh Susannah” começa assim: “Ó Susana, não chores por
mim...”
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