Nas sociedades antigas, não havia dicotomia entre “vida religiosa” e “vida
secular”. A religião ou o trabalho não eram aspectos compartimentados da vida, mas constituíam uma só esfera integrada, holística. Essa é a compreensão na cultura islâmica e também nas religiões de raiz africana.
Na visão tradicional judaica, por exemplo, as atividades humanas são realizadas para a
glória de Deus e “em tudo” se dá graças a Deus. A procriação, o casamento, a refeição,
o sono, o trabalho e o lazer, a música e as leis, são dádivas celestes e
oportunidades para se cooperar com a bondade e a justiça divinas.
A ética calvinista sublinhava a motivação dos protestantes anglo-saxões
do século 18 quanto a trabalhar honestamente, poupar rigorosamente e a divertir-se de
maneira frugal. De um certo modo, era uma visão que admitia um forte senso da
presença de Deus, que
também era um juiz a observar as práticas dos indivíduos e a quem se devia oferecer o tempo e os melhores empreendimentos.
Em nossa época, as atitudes de vários grupos cristãos demonstram que a
ética calvinista da poupança foi substituída por uma ética evangélica de
consumo. Além disso, a diversão e o entretenimento fazem parte dos novos
comportamentos evangélicos que passam a ter um envolvimento ativo com o variado
universo do entretenimento pop. Esse envolvimento se dá em face de um maior abrandamento dos costumes e abandono de restrições.
Como "testemunha" (e não ré, por favor) desses novos comportamentos, está a evangélica Aline Franzoi, modelo que atua como ring girl, a garota que levanta
as placas nos ringues/octógonos do UFC. Ela afirmou não ver problemas em ser uma ring
girl porque “religião e profissão são áreas diferentes”.
A fala de Aline Franzoi reproduz uma tendência dos cristãos na
modernidade, a de que se possui uma vida dupla, isto é, uma para Deus e outra
de ordem individual. Talvez um bem social legítimo e necessário como a laicidade, a separação entre Igreja e Estado, tenha contribuído para o desenvolvimento de uma "dupla" consciência individual, em que a religião está isolada da "vida secular". Nesse sentido, uma fração dos evangélicos se sente livre para se envolver
em atividades profissionais que outros segmentos cristãos considerariam impróprias.
As lutas do UFC, nas quais há competidores que agradecem a Deus após "finalizarem" o adversário, também atraem espectadores evangélicos. E agora é possível que mais garotas evangélicas
venham a participar como ring girls e a se tornar também musas do UFC.
Aline Franzoi já havia feito fotos sensuais para a revista VIP,
garantindo que não posaria jamais como veio ao mundo. Mas esse limite foi superado, pois ela acabou de se tornar a “primeira evangélica capa da Playboy”. Sabendo que no meio evangélico toda nudez midiática será castigada, ela se
justificou: “Deus vê o coração e a nossa intenção”.
O recurso a essa citação bíblica é um expediente que tem sido usado como atenuante para qualquer prática controversa entre os evangélicos. Em todo caso, a modelo parece ciente de que Deus vê o coração dos indivíduos enquanto os indivíduos só podem mesmo contemplar a criação divina. Soa como uma contradição irônica e até casuística: ela sabe
que Deus olha o coração e que os homens, não.
Numa época em que belas mulheres que foram capa de “revistas
masculinas” se convertem ao cristianismo, Aline estaria percorrendo exatamente o
caminho contrário? É que esta também é a época em que se consolida uma cultura evangélica que adere à modernidade somente no que ela oferece de diversão, consumo e culto à celebridade. Em outros aspectos e debates, prevalece o obscurantismo teológico e o fundamentalismo ideológico.
Há uma mentalidade no cristianismo que reprime brutalmente o corpo. Muitos castigam o corpo como repositório de todo o mal. Uma outra mentalidade abdica de velhas restrições e assume maior liberdade de exibição do corpo. Desse modo, o corpo é o objeto utilizado para punir ou estimular o desejo e o prazer.
Há uma mentalidade no cristianismo que reprime brutalmente o corpo. Muitos castigam o corpo como repositório de todo o mal. Uma outra mentalidade abdica de velhas restrições e assume maior liberdade de exibição do corpo. Desse modo, o corpo é o objeto utilizado para punir ou estimular o desejo e o prazer.
Esses dois pensamentos opostos resultam do
mesmo equívoco filosófico e teológico: a teoria de que o corpo é uma coisa
e a “alma” é outra, de que o corpo seria para atividades seculares/"mundanas" e
a mente/alma para Deus. O dualismo dos gregos antigos, que separa o corpo da
alma, ainda frequenta o pensamento cristão. Talvez por isso alguns entendam que é
possível ganhar o “mundo”, perder o corpo e salvar a alma.
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