É noite em Jerusalém e a plateia aguarda com expectativa do lado de fora do
átrio: “E o Troféu Ebenezer de Melhor Salmista vai para...
[que rufem os adufes] Jedutum!” Os filhos de Hamã aplaudem, e em coro saúdam
com a típica manifestação mosaica: “Ele merece! Ele merece!” Mas, no fundo,
esperavam sair com o prêmio nas mãos. Agora, até as raposas sem covil sabem que
rolos e rolos de pergaminho com as letras de Jedutum vão ser vendidos com a
inscrição de “melhor cantor do ano”.
3 ou 4 mil anos depois...
O Troféu Promessas se define como um “evento com apoio da
Rede Globo e um instrumento para honrar
a vida daqueles que se dedicam à música gospel”. É o que diz no site da
premiação. Talvez fosse suficiente dizer que se trata de um evento dedicado a premiar os
cantores gospel, mas é preciso celebrar tanto a inédita parceria com a mídia dominante como também justificar a competição com
tonalidades nobres. Fico pensando que se quisessem honrar a vida do cristão não
bastaria escolher um veterano da música cristã e lhe entregar um
prêmio.
Os idealizadores da Troféu Promessas também criaram uma
categoria onde se lista vários nomes que receberam votos via Facebook. O título
singelo é: “Pra Curtir”. Imagino o cantor sério, que está no gospel pela missão
e não pela moda, que visa anunciar o evangelho e confortar as pessoas com sua
música, e aí vê seu trabalho resumido a um “pra curtir”!
O mundo gospel fez pouco esforço para escapar da lógica pop
que move a indústria fonográfica. Embora os cantores se denominem ministros e
não artistas, embora o público diga que as canções de tal ministro sejam cheias
de “unção”, embora todos afirmem que a música é um modo de levar a “mensagem da
salvação”, a promoção de um troféu para os melhores faz entrar em cena a
roda-viva das contradições:
- as igrejas advertem contra a era de consumismo, mas suas
gravadoras precisam vender seus produtos num contexto de alta concorrência comercial e religiosa;
- a igreja lança uma anátema contra o estrelismo, mas a
indústria gospel reproduz mecanismos de transformação de “ministros” em
celebridades e de fiéis em fãs;
- a igreja busca motivar o exercício da missão, e o mundo
gospel cria uma competição para premiar os que melhor cantaram essa missão;
- a igreja abre a Bíblia para dizer que todos são igualmente
falhos e carentes da graça divina, o Troféu Promessas pede para que você
escolha “o melhor”.
O Troféu Promessas não é como uma competição escolar, em que
o objetivo é premiar os méritos de um estudante dedicado aos estudos; nem é
como uma gincana juvenil que serve para socializar e entreter. Trata-se de uma
premiação de viés promocional similar às premiações da indústria da música pop.
Comércio e promoção não são intrinsecamente maus. Mas o
conluio de estratégias da indústria pop com o ministério musical cristão levou gospel a um beco difícil de sair.
A controvérsia se instala de vez quando uma instituição religiosa pede votos para os cantores que são adeptos da sua igreja. Para alguns, essa
seria uma estratégia providencial de divulgação da igreja; para outros, isso
soa como lobby corporativista. Alguém poderia perguntar: é
para votar no melhor cantor ou na melhor doutrina?
Essa é uma época em que os modos de transmissão da mensagem
religiosa aparentam maior ambiguidade, já que a votação corporativista tanto
divulga a missão da igreja quanto pode aumentar as vendas dos bens musicais. Mas não se pode descartar o fato de que o lucro financeiro é pequeno (e quase sempre é mesmo) perto do saldo
evangelístico.
Nesse sentido, embora a até a claque dos programas de TV saiba que a Rede Globo fechou com a indústria fonográfica gospel por causa da chance de aumentar a audiência e o faturamento, os cantores gospel entendem que a oportunidade de transmitir os conteúdos da fé está acima da probabilidade de entrar em polêmica comercial.
Embora muitos cantores cristãos sejam discretos em relação ao troféu, os executivos das gravadoras vivem do retorno de seus investimentos e precisam incrementar a receita da empresa. Por isso, há gravadoras que aproveitam
a premiação para relançar o CD vencedor, agora com a tarja de
“Melhor CD no Troféu Promessas”. Alguns sites de venda de produtos gospel
utilizam a mesma estratégia para alavancar as vendas, e aí estamos de volta à
roda-viva das contradições.
Agora, algumas perguntas sem nenhum juízo de ouvintes, cantores ou denominações:
Que espécie de visibilidade midiática e evangélica gera uma premiação dos “melhores” da
música cristã?
É mesmo incorreto usar a premiação para divulgar a missão da igreja se, afinal, o que interessa aos cantores não é o troféu, mas a oportunidade de comunicar seus princípios e crenças a uma grande plateia?
Os grupos de fãs que fazem campanhas pelo seu cantor preferido
estão agindo certo?
E os músicos cristãos? Tem se posicionado contra a adesão às
estratégias de publicidade e mercantilização do evangelho musical?
Se não há um troféu nacional para o melhor pastor ou evangelista, e se os cantores são considerados evangelistas, não haveria uma contradição na existência de um prêmio para os "levitas da música"?
Será que as gravadoras não têm gerenciado a música cristã como uma área de ação ministerial de evangelismo, mas como um campo da ação empresarial de artistas do pop?
*****
Atualização em 15/11/2013: a Globo cancelou o evento de premiação e o troféu será enviado aos vencedores pelos Correios. Mas os vencedores foram os convidados do programa "Encontro com Fátima Bernardes", na TV Globo. Pode ter sido mais benéfico, pois melhor do que uma cerimônia de premiação que poderia esquentar mais a polêmica, foi a chance única para os cantores premiados cantarem e falarem abertamente de sua fé no programa global.
Será que as gravadoras não têm gerenciado a música cristã como uma área de ação ministerial de evangelismo, mas como um campo da ação empresarial de artistas do pop?
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Atualização em 15/11/2013: a Globo cancelou o evento de premiação e o troféu será enviado aos vencedores pelos Correios. Mas os vencedores foram os convidados do programa "Encontro com Fátima Bernardes", na TV Globo. Pode ter sido mais benéfico, pois melhor do que uma cerimônia de premiação que poderia esquentar mais a polêmica, foi a chance única para os cantores premiados cantarem e falarem abertamente de sua fé no programa global.
Comentários
shabbat shalom
edson
que bom que o texto lhe alcançou.