Quando um compositor cristão faz uma música, ele atravessa o mesmo
processo que um compositor de qualquer outra crença ou descrença: escolher a
letra, a rima, a palavra certa; selecionar o som, a altura, o acorde.
O que distingue a composição de um músico para outro não é o processo,
mas o paradigma. Explico. Se o processo é semelhante, o paradigma de composição
é diferente porque os compositores têm pelo menos dois modos de perceber o ato
de compor: ou o músico se alinha às premissas musicais e poéticas mais
convencionais ou ele busca os ingredientes musicais e poéticos mais inovadores.
É com essa segunda percepção que o compositor, cantor e maestro Daniel Salles
vê a prática musical.
No CD Renascido, ele apresenta uma paleta variada de estilos e formas
musicais que contêm o germe da invenção. Paradoxalmente, o que Renascido
tem de inovação poética e musical, tem também de preservação da doutrina
tradicional.
Enquanto a doutrina é inflexível, pois se trata de declarar princípios
teológicos que raramente são alterados, a forma de cantar a doutrina não é imutável,
pois se trata de usar códigos musicais que constantemente são modificados. O
material de que é feito a doutrina tem um núcleo mais rígido, sólido. O
material de que consiste a música é mais fluido, dinâmico. Renascido é um
trabalho de solidez doutrinária na voz da fluidez musical.
Os exemplos musicais povoam o cd inteiro. Na canção “Quando o vento do
espírito soprar” (ouça aqui), a transição de acordes alterados (cheios de sextas, sétimas e
nonas), associados à tradição da MPB mais sofisticada, vai embelezando a canção
que faz uma inquietante pergunta aos cristãos que não veem sua igreja crescer
solidamente na obediência e na missão: “Por que será, por que razão, temos tudo
nas mãos, mas não há fogo no altar?”
O compositor não se refere a milagres, curandeirismos ou manifestações
extáticas como suposta prova do fogo da presença do Espírito Santo. Ele
constata a falta de comunhão, de devoção e de amor mútuo entre os próprios
cristãos, o que afastaria um maior poder de atuação celeste na vida da igreja.
Mas a música não estaciona na constatação de paralisia e mornidão da igreja e
recorre a citações de trechos bíblicos (Joel 2:13; Atos 2:17: nos últimos dias,
vossos filhos profetizarão...):
“Quando a comunhão for a arma principal
E a rotina dos nossos dias sair do seu normal
Descerá sobre nós o fogo do Espírito
Viveremos o evangelho
E Jesus Cristo vai voltar”
No trecho acima, o arranjo musical apresenta acordes mais simples e
timbres mais pesados (guitarras), enquanto a voz do cantor está mais firme e
forte, o que revela a intenção de introduzir os (auto)questionamentos de
maneira musicalmente reflexiva e chegar ao posicionamento final de esperança de
maneira mais afirmativa.
Outras duas canções reforçam a combinação de manutenção da doutrina
tradicional com exploração musical criativa: “Imutável” e “Sábado”. Na
primeira, uma melodia cheia de curvas:
“Deus não muda, e a Palavra não se anula
Não é inflexível, [...] sempre permite mudar e mudar em função de uma
escolha
[...] Por ser imutável, Deus continua me mudando”
Já a canção “Sábado” dá a esse ponto doutrinário um tratamento mais
ameno. Em geral, somente as canções infantis adventistas têm tonalidades de
leveza quando abordam o sábado. O que Daniel Salles faz é colorir o sábado de
um modo menos rígido ou severo como às vezes esse dia é interpretado mesmo por pessoas
que observam o sábado como o dia de descanso semanal.
“O sábado é o dia do sim, e não do não
Sábado faz parte da minha existência
Símbolo da alegria e da salvação”
A letra mostra tanto a alegria de guardar o sábado quanto o contraste
entre o sábado e os outros dias. A interpretação vocal de Daniel Salles e
Dirley Menegusso estampa felicidade. E toda essa demonstração de alegria e
leveza encontra correspondência na escolha do estilo musical: o samba.
Evidentemente, é uma escolha musical pouco ortodoxa. Mas o arranjo musical
não soa agressivo nem borra a mensagem doutrinária. A percussão é suave, sem
batida forte de bumbo ou surdo, e a melodia em nada lembra rodas de samba ou
desfiles de carnaval. O estilo musical pouco usual para falar do sábado
funciona como indício de alegria e leveza e símbolo de musicalidade brasileira.
Seria como se o disco perguntasse: Por que é aceitável falar da volta
de Cristo com marchas militares norte-americanas e não se poderia falar de
sábado com a música de caráter mais brasileiro?
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