Há uma classe de pessoas que ainda padecem de um mal que em pleno
século 21 deveria estar tão extinto quanto os dinossauros e as fitas cassete:
são os espécimes que se espantam com mulher falando em público por seus direitos. Eles sofrem do
complexo de Nazareno, aquele personagem da TV que, ao menor
sinal de reclamação da mulher, dizia: “Calada!”
Queremos votar. Calada!
Quero respeito, cantava Aretha Franklin. Calada!
Salários iguais em cargos profissionais iguais. Calada!
A persistência da violência contra a mulher. Calada!
As reclamações de que o tema da redação do ENEM era obra do progressismo, feminazismo, doutrinação liberal e
conspiração petista para tornar os machos reféns das empoderadas mulheres são
de uma imbecilidade atroz. Acreditar que não se deve discutir em público a
violência milenar contra as mulheres de um modo geral revela uma faceta de
ignorância que também merece ser tema de redação nos próximos vestibulares: “A persistência da intolerância em questões de convivência entre seres humanos”.
Não vou entrar no mérito de que há excessos (e há mesmo) nos novos discursos
sobre direitos, que algumas correntes mais radicais possuem um fervor exclusivista
e proselitista arrogante e que tendem a atuar silenciando os oponentes. Existem pessoas com esse perfil em questões de esporte e religião e alguns tendem a ter mais respeito por religiosos ultraconservadores do que por feministas ultraliberais.
Passando adiante.
O que os marmanjos reclamões gostariam que fosse o tema da redação? “A
imposição do progressismo nas escolas?” “Cada um no seu quadrado”? "Mulher já manda em casa, pra quê mandar em público"? Meu candidato à presidente é menos corrupto"? “Meu pastor é mais
rico que o teu?”
Talvez quisessem um tema bem genérico, que não mexesse em vespeiro, bem
sopa de hospital: “Eu quero ver onde essa zorra vai parar”. Esse foi o tema da
redação do vestibular que fiz em 1989. Era título de uma canção da Simone e
favorecia todos os debates e ao mesmo tempo nenhum. Comparada aos temas de hoje, acho que só os marmanjos
reclamões não vão notar uma evolução nas discussões públicas.
Alguns indivíduos dão mostras de que estão na era do macho lascado, aquele que não admite ver seu
discurso sendo relativizado, discutido, pesado na balança, desmontado. Outros veem as novas discussões atingirem diretamente o discurso ultrapassado, mas persistente, que prefere ver “tudo no
seu lugar”: esse preto não se põe no lugar, essa mulher não se põe no lugar,
esse velhote não se põe no lugar, esse índio não se põe no lugar, esse
estrangeiro não volta pro seu lugar...
Às vezes, isso invade nossa conduta cotidiana e nem percebemos. Naturalizamos os
preconceitos e a violência de tal forma que há espanto quando quem era tratado como coadjuvante social começa a agir como protagonista. Quando vamos praticar o ensinamento de nos
colocarmos no lugar dos outros, e não de por os outros no seu “devido lugar”?
Também me deixa perplexo como alguns seguidores do Nazareno da Bíblia ainda
sofrem do complexo do Nazareno da TV. Eles reclamam dos temas humanísticos do
ENEM como provavelmente reclamariam de Jesus conversando com a samaritana: “Olha lá aquele
progressista conversando com a estrangeira?” Ou: “Olha lá o doutrinador liberal
que não joga pedra na Geni adúltera?”
Não pretendo dizer que Cristo foi um progressista nos moldes de nossa
época atual. Quero dizer é que não era por acaso que o Nazareno da Bíblia era amado pela
gente oprimida e marginalizada de sua época. Ele não dizia “Calada!”. Ele perguntava “O que
queres que eu te faça?” (Marcos 10:51).
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e mando um abraço.
Paulo Roberto - de Registro/SP