Como uma música de Rousseau virou hino evangélico?
No Hinário Adventista do Sétimo Dia, há uma música chamada “A Escola
Sabatina”. Trata-se de uma versão cujo original está no hinário adventista
norte-americano (Seventh-Day Adventist
Hymnal) com o título “Long Upon the Mountains”. As letras de cada uma
dessas versões são bem diferentes, mas a melodia é a mesma, “Greenville”, e o
autor da música também: Jean-Jacques Rousseau. O que nos surpreende é que
Rousseau foi um filósofo iluminista, sem associação com igrejas cristãs. Então,
como essa melodia foi parar nos hinários evangélicos?
É preciso voltar a 1752, ano em que Rousseau estreou sua
pequena ópera “Le Devin Du Village” na corte francesa do rei Luís XV. Essa
ópera fez tamanho sucesso que o próprio rei, que não gostava de música, passou
a cantarolar trechos da ópera e teria até oferecido ao autor uma pensão
vitalícia. Aliás, prontamente recusada por Rousseau.
A melodia que está no hinário é simplesmente a adaptação de
um trecho instrumental dessa ópera. Antes de chegar aos hinários, essa mesma
melodia foi intitulada como “O Sonho de Rousseau” em duas coletâneas de música
publicadas pelo inglês Thomas Walker em 1819. Se você já está achando essa
história extravagante, mais curioso é o fato de que essa adaptação acabou se
tornando um sucesso popular infantil no Japão e até hoje é peça frequente em
recitais de alunos iniciantes de violino.
A primeira versão cristã da
melodia de Rousseau apareceu em 1823 com o título “Sweet Affliction” numa
coletânea de música sacra (Collection of
Church Music) editada pelo compositor protestante Lowell Mason e financiada
pela Sociedade Handel e Haydn da cidade de Boston. Seguindo o costume da época
de utilizar uma mesma melodia para hinos diferentes, a melodia de “Sweet
Affliction” serviu de base musical para diferentes letras de hinos: “Come, Thou
Fount of Every Blessing” (letra de Robert Robinson), “In the Floods of Tribulation”
(letra de Samuel Pearce), “Gently Lord, oh Gently Lead us” (de Thomas
Hastings). Presente em diversos hinários evangélicos do século 19, essa melodia
ainda recebeu títulos diferentes como “The Days of Absence”, “Absence” e
“Importunity”.
No hinário editado por Lowell Mason, o título do hino era
“Sweet Affliction” e a melodia não era mais chamada de “O Sonho de Rousseau”,
mas sim “Greenville”. No atual hinário adventista norte-americano, o título é “Long
Upon the Mountains”, mas a melodia é a mesma “Greenville” (imagem ao lado). No hinário
adventista brasileiro, o hino é intitulado como “A Escola Sabatina”, e a
melodia base é “In Sweet Communion”. Bem, qualquer semelhança com o título
“Sweet Affliction” dificilmente é mera coincidência.
Mas, e naquela época, ninguém se incomodou de cantar uma
música cujo autor era um filósofo iluminista? Provavelmente, não.
Primeiro, porque havia pouca preocupação dos evangélicos com
a origem da música. De acordo com Gilbert Chase (Do salmo ao jazz, p. 143), qualquer música que agradasse ao gosto
da época poderia ser adaptada à letra de um hino.
Em segundo lugar, vários compositores protestantes
norte-americanos consideravam que a música clássica europeia era o padrão
musical a ser imitado pela música cristã daqueles dias. Lowell Mason era membro
da Sociedade Handel e Haydn e, não por acaso, o longo subtítulo da sua coletânea
sacra de 1823 era: “Uma seleção dos mais
aprovados salmos e melodias, junto com muitos belos trechos de obras de Haydn,
Mozart e Beethoven, e outros eminentes compositores, ...”. Numa rápida
busca pelo índice de compositores do seu hinário, você vai encontrar esses
nomes e os de outros músicos eruditos que tiveram maior, menor ou nenhuma
associação com o cristianismo, entre eles, Jean-Jacques Rousseau. Aliás,
Rousseau era iluminista, mas não era ateu, e sim um deísta. O que dificilmente vai melhorar sua imagem diante dos evangélicos teístas.
Em resumo, os editores dos hinários estavam interessados em
melodias que todos pudessem aprender facilmente. Adotar uma melodia bastante
conhecida facilitava o ensino de um novo hino num período sem o recurso das
gravações. Diante disso, a origem da melodia e a vida de seu autor tinham menor
importância. Era uma época em que o repertório evangélico estava em formação,
sendo pequeno o número de compositores e grande a vontade de louvar a Deus.
Em pleno século 21, a bonita melodia de Rousseau se tornou
tão sacra e tradicional quanto “Castelo Forte”. Algumas pessoas podem até achar
que ela deve representar o padrão melódico e rítmico a ser imitado pela música
cristã de nossos dias. De todo modo, a prática de adaptar conhecidas melodias
seculares a letras cristãs foi abandonada.
A adaptação da melodia de Rousseau se trata de um
recurso que foi útil em certo momento histórico. Mas esse recurso estava
relacionado a outro contexto, a outra maneira de lidar com a cultura e também tinha
outro sentido, bem diferente do contexto e da cultura adventista contemporânea.
As histórias dos hinos nos ajudam a perceber que o hinário,
mais que uma coletânea de música sacra, serve também para nos lembrar das
tendências musicais e dos recursos encontrados pelos crentes para adorar a Deus
em diferentes épocas e lugares. As formas e práticas musicais mudam. Permanece
a vontade de louvar a Deus, “porque Ele é bom e a sua misericórdia dura para
sempre” (salmos 106,107,118 e 136).
* Com informações do
artigo de Edward Green, “Reconsidering Rousseau’s Le devin du village”, Ars Lyrica, 16, 2007; e The New
Harp of Columbia.
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