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quando a teologia canta




Convencer alguém a ir à igreja num sábado à noite parece tão difícil quanto convencer uma pessoa a ir ao dentista extrair um siso. Todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite: uma pizza, um filme, uma conversa boa. Menos ter que ir a um culto. Ou ao dentista.
Mas foi justo num sábado à noite que fui com meus filhos à igreja. Na verdade, fomos assistir a um concerto cristão. Os cantores entraram no palco, a banda começou a tocar e fluíram uma, duas, três canções bonitas que todo mundo parecia conhecer.
Antes de cada música, os músicos falavam um pouco sobre sua vida e, especialmente, a respeito da existência humana, da convivência e da busca por significado. Em seguida, abordavam questões de fé, religião e comunhão, reforçavam a necessidade individual de conhecer melhor a Bíblia e apontavam para o sentido da vida: relacionamento com Deus e com os semelhantes.
Fez toda diferença ouvir um concerto em que os cantores são também pastores. E uma das funções mais nobres de um pastor é traduzir o texto bíblico para a linguagem dos leigos; é tornar a teologia não somente compreensível, mas irresistível.
Músicos não precisam ter formação teológica. No entanto, com o apoio da leitura da Bíblia, de devocionais e de livros teológicos, as letras de suas composições poderão deixar os córregos superficiais e passar a navegar em águas profundas. Assim, músicos profissionais podem ser também teólogos amadores com a função de traduzir as Escrituras para uma poesia fértil de teologia e comunicar uma teologia que canta.
“Pra trás eu deixo o homem que fui e as casas que eu construí longe de Ti. Se tudo mudou eu abro as velas da embarcação, na esperança que pela manhã avistarei o porto onde Te encontrarei” (Esperança – Os Arrais).
Essa letra está numa canção contemporânea, mas conta a velha e feliz história sobre portos e praias de lugares celestiais presentes no hino “The Homeland Shore”, canção contemporânea do século 19 que recebeu letra de Fanny Crosby e foi inserida nos primeiros hinários adventistas pelos editores Urias Smith e Tiago White. No Brasil, canta-se como “Saudade” (Da linda pátria estou muito longe…).

De volta à sala de concertos, as canções se sucediam dizendo que para “não ser tentado a abandonar a missão” é melhor “por fogo na embarcação” e, assim como os discípulos André e Tiago, seguir o Mestre; alertando para a contradição de falar que conhece a Cristo e logo esquecê-Lo na primeira esquina; e nos levando a fechar os olhos e se encher “do ar de um monte onde rico e pobre comerão da mesa do Rei”.
No final da última canção, os dois irmãos teólogos-cantores emendaram o hino tradicional “Mais Perto Quero Estar”, e em seguida deixaram o palco enquanto continuamos cantando a capella. E a cortina se fechou e não houve bis, mas aplausos contidos e a percepção de que naquele concerto a plateia foi convertida em congregação.

Foi assim que, sem saber, as pessoas saíram de casa num sábado à noite para ir a um culto. Foi assim que dois cantores transformaram uma sala de concertos em igreja. É assim que, de Tiago White a André e Tiago Arrais, a fagulha da esperança não se apaga e a fé cristã ainda se move cantando.
Agradeci pelo alimento recebido ali, agradeci por meus filhos terem ouvido a teologia cantada no seu idioma, e voltei para casa entendendo que a teologia é boa de ler, mas ela fica ainda melhor quando enternece a gente e motiva a cantar a gratidão, o amor e a esperança no Eterno. Seja isso nossa estrofe, ponte e refrão.

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