O Brasil republicano fez 120 anos neste domingo dia 15, mas até os paralelepípedos de Brasília sabem que não se passou um dia desde a hora em que Deodoro da Fonseca empunhava a derrubada da monarquia.
Um dos princípios básicos do republicanismo, a ética no tratamento da res pública, da coisa pública, do dinheiro público, ainda está para ser consolidada no Brasil. Nessa terra de Vera Cruz, ainda vigora o apadrinhamento colonial e a distribuição de cargos como se estes fossem capitanias hereditárias.
De república velha para república nova, do Rio para Brasília, os personagens políticos mudam apenas de nome; nem a mudança de sobrenome pode ser celebrada. Houve mais mudança na passagem da bossa nova para a tropicália do que na mudança de réis para reais ou de reis para republicanos. Há menos pleonasmo no “coqueiro que dá côco” do que nos discursos políticos; há mais farra com as verbas públicas do que entre as carnes públicas no carnaval.
O Hino da Proclamação da República ilustra com raro fervor a causa nativa. Suas estrofes têm tantas orações indiretas que no fim de cada uma já não se sabe do que a letra fala mesmo. É preciso cantá-lo com tradução simultânea dado o alto número de palavras nada cotidianas como “torpes labéus”, “pálio de luz desdobrado”, “brilha ovante” e “louçãos”.
Este blog, no cumprimento do seu dever cívico, lhe concede, pátrio leitor, a chance áurea, se não de decorar o Hino da República, ao menos de vir a conhecer seu inefável significado.
Seja um pálio de luz desdobrado / Sob a larga amplidão destes céus
Este canto rebel que o passado / Vem remir dos mais torpes labéus!
Seja um hino de glória que fale / De esperança, de um novo porvir!
Com visões de triunfos embale / Quem por ele lutando surgir!
O que o letrista Medeiros e Albuquerque (1867/1934) queria dizer é algo mais ou menos assim: Esse hino rebelde cantado debaixo do céu infinito purifica o passado de manchas desonrosas. A estrofe pede que esse hino glorioso transmita a esperança de um novo futuro e o penúltimo verso diz que o hino possa embalar (cantar para criança dormir) com sonhos de vitória quem lutar pelo novo futuro. Essa é a metáfora que balança o berço esplêndido em que dorme o guerreiro brasileiro.
O tal “pálio” não é propaganda subliminar da Fiat, mas um sobrecéu portátil, com varas, usado em procissões para cobrir o sacerdote que leva a custódia. Com uma definição dessas não há quem não acredite que uma imagem fala mais que mil traduções.
Nós nem cremos que escravos outrora / Tenha havido em tão nobre País...
Hoje o rubro lampejo da aurora / Acha irmãos, não tiranos hostis.
Mal expulsaram D. Pedro II and family e já estavam com ganas de apagar a história. Já nem acreditavam que o Brasil tão nobre adotara o abjeto escravismo. Os raios da aurora só encontrava irmãos fraternos!
Somos todos iguais! Ao futuro / Saberemos, unidos, levar
Nosso augusto estandarte que, puro, / Brilha, ovante, da Pátria no altar!
Como somos todos iguais podemos conduzir nosso estandarte que brilha triunfante no altar da república. Olha a confusão de religião com nacionalismo aí, geeeente!
Se é mister que de peitos valentes / Haja sangue em nosso pendão,
Sangue vivo do herói Tiradentes / Batizou este audaz pavilhão!
Mensageiros de paz, paz queremos, / É de amor nossa força e poder
Mas da guerra nos transes supremos / Hei de ver-nos lutar e vencer!
Toda revolução é assim. Primeiro, pedem nosso amor à pátria. Depois, vêm logo pedir nosso sangue. A estrofe até menciona a paz que excede todo ufanismo, mas vai o reservista dizer que é mensageiro de paz...
Do Ipiranga é preciso que o brado / Seja um grito soberbo de fé!
O Brasil já surgiu libertado, / Sobre as púrpuras régias de pé.
Eia, pois, brasileiros avante! / Verdes louros colhamos louçãos!
Seja o nosso País triunfante, / Livre terra de livres irmãos!
Na última estrofe, há um apelo à memória do Ipiranga. No entanto, nessas paragens tropicais, é mais fácil ouvir um sabiá na palmeira que a voz do povo na rua. Assim foi no grito surdo da Independência, quando D. Pedro I fazia pose para o famoso quadro de Pedro Américo e a população analfabetizada só saía à rua para dançar a chula e vender o peixe. Foi assim na proclamação muda da República, uma quartelada acontecida às primeiras horas da manhã de 15 de novembro de 1889 que fez pouco mais que uma troca de grupos de poder. Homens ocos de justiça foram substituídos por homens ocos de senso do dever.
Mas as gentes ouvem coisas como “púrpuras régias de pé” e quedam encantados. A retórica dos homens ocos nos pede para colhermos os verdes e louçãos louros da vitória. Louçãos quer dizer viçosos, graciosos, garridos (agora sabemos o que queriam dizer com “nossa terra mais garrida”). "Novo porvir", "livre terra de livres irmãos": a classe republicana vai ao paraíso.
Um dos princípios básicos do republicanismo, a ética no tratamento da res pública, da coisa pública, do dinheiro público, ainda está para ser consolidada no Brasil. Nessa terra de Vera Cruz, ainda vigora o apadrinhamento colonial e a distribuição de cargos como se estes fossem capitanias hereditárias.
De república velha para república nova, do Rio para Brasília, os personagens políticos mudam apenas de nome; nem a mudança de sobrenome pode ser celebrada. Houve mais mudança na passagem da bossa nova para a tropicália do que na mudança de réis para reais ou de reis para republicanos. Há menos pleonasmo no “coqueiro que dá côco” do que nos discursos políticos; há mais farra com as verbas públicas do que entre as carnes públicas no carnaval.
O Hino da Proclamação da República ilustra com raro fervor a causa nativa. Suas estrofes têm tantas orações indiretas que no fim de cada uma já não se sabe do que a letra fala mesmo. É preciso cantá-lo com tradução simultânea dado o alto número de palavras nada cotidianas como “torpes labéus”, “pálio de luz desdobrado”, “brilha ovante” e “louçãos”.
Este blog, no cumprimento do seu dever cívico, lhe concede, pátrio leitor, a chance áurea, se não de decorar o Hino da República, ao menos de vir a conhecer seu inefável significado.
Seja um pálio de luz desdobrado / Sob a larga amplidão destes céus
Este canto rebel que o passado / Vem remir dos mais torpes labéus!
Seja um hino de glória que fale / De esperança, de um novo porvir!
Com visões de triunfos embale / Quem por ele lutando surgir!
O que o letrista Medeiros e Albuquerque (1867/1934) queria dizer é algo mais ou menos assim: Esse hino rebelde cantado debaixo do céu infinito purifica o passado de manchas desonrosas. A estrofe pede que esse hino glorioso transmita a esperança de um novo futuro e o penúltimo verso diz que o hino possa embalar (cantar para criança dormir) com sonhos de vitória quem lutar pelo novo futuro. Essa é a metáfora que balança o berço esplêndido em que dorme o guerreiro brasileiro.
O tal “pálio” não é propaganda subliminar da Fiat, mas um sobrecéu portátil, com varas, usado em procissões para cobrir o sacerdote que leva a custódia. Com uma definição dessas não há quem não acredite que uma imagem fala mais que mil traduções.
Nós nem cremos que escravos outrora / Tenha havido em tão nobre País...
Hoje o rubro lampejo da aurora / Acha irmãos, não tiranos hostis.
Mal expulsaram D. Pedro II and family e já estavam com ganas de apagar a história. Já nem acreditavam que o Brasil tão nobre adotara o abjeto escravismo. Os raios da aurora só encontrava irmãos fraternos!
Somos todos iguais! Ao futuro / Saberemos, unidos, levar
Nosso augusto estandarte que, puro, / Brilha, ovante, da Pátria no altar!
Como somos todos iguais podemos conduzir nosso estandarte que brilha triunfante no altar da república. Olha a confusão de religião com nacionalismo aí, geeeente!
Se é mister que de peitos valentes / Haja sangue em nosso pendão,
Sangue vivo do herói Tiradentes / Batizou este audaz pavilhão!
Mensageiros de paz, paz queremos, / É de amor nossa força e poder
Mas da guerra nos transes supremos / Hei de ver-nos lutar e vencer!
Toda revolução é assim. Primeiro, pedem nosso amor à pátria. Depois, vêm logo pedir nosso sangue. A estrofe até menciona a paz que excede todo ufanismo, mas vai o reservista dizer que é mensageiro de paz...
Do Ipiranga é preciso que o brado / Seja um grito soberbo de fé!
O Brasil já surgiu libertado, / Sobre as púrpuras régias de pé.
Eia, pois, brasileiros avante! / Verdes louros colhamos louçãos!
Seja o nosso País triunfante, / Livre terra de livres irmãos!
Na última estrofe, há um apelo à memória do Ipiranga. No entanto, nessas paragens tropicais, é mais fácil ouvir um sabiá na palmeira que a voz do povo na rua. Assim foi no grito surdo da Independência, quando D. Pedro I fazia pose para o famoso quadro de Pedro Américo e a população analfabetizada só saía à rua para dançar a chula e vender o peixe. Foi assim na proclamação muda da República, uma quartelada acontecida às primeiras horas da manhã de 15 de novembro de 1889 que fez pouco mais que uma troca de grupos de poder. Homens ocos de justiça foram substituídos por homens ocos de senso do dever.
Mas as gentes ouvem coisas como “púrpuras régias de pé” e quedam encantados. A retórica dos homens ocos nos pede para colhermos os verdes e louçãos louros da vitória. Louçãos quer dizer viçosos, graciosos, garridos (agora sabemos o que queriam dizer com “nossa terra mais garrida”). "Novo porvir", "livre terra de livres irmãos": a classe republicana vai ao paraíso.
Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade Dá que ouçamos tua voz!
Nossa proclamação da república teve salva de tiros, hino, missa e desfile; só não teve a participação do povo. Como em 1500 e em 1822, a população era apenas um detalhe no espetáculo encenado do poder. Houve reforma do gabinete e reforma do nome dos logradouros públicos, mas reforma da consciência social, universalização de direitos, impessoalidade na administração, isso talvez seja coisa pra outros 120 anos.
Comentários
Bom texto. Preocupa pensar em futuro qdo se trata de um povo a qm política nunca importou e história menos ainda. Vc já teve a oportunidade de ler "Leite derramado", do Chico? Se não, fica a sugestão.
Graça e paz!
não li nada do chico escritor. valeu a dica.