A fenomenal expansão do segmento pentecostal brasileiro se tornou um objeto de pesquisa acadêmica, sendo a indústria musical o ponto mais focalizado. Além das óbvias áreas da musicologia e da teologia, comparecem agora as ciências da comunicação, a psicologia e a economia. Durante o mestrado, encontrei bastante literatura sobre o tema, a maioria em forma de grossas dissertações encadernadas nas bibliotecas universitárias.
Um dos trabalhos mais acurados está o da professora Magali do Nascimento Cunha, doutora em Ciências de Comunicação e mestre em Memória Social e Documento, docente da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo. Seu livro Explosão Gospel (Editora Mauad), analisa as novas atitudes socioculturais dos evangélicos, situando-os dentro da lógica de mercado e da compreensão bíblica neopentecostal.
A seguir, trechos da entrevista concedida por Magali Cunha à revista Cristianismo Hoje:
CRISTIANISMO HOJE – Como a senhora define a cultura gospel?
MAGALI DO NASCIMENTO CUNHA – Vivemos o surgimento de uma cultura religiosa nova, um jeito de ser diferente daquele construído pelos evangélicos brasileiros ao longo de sua história. Novos elementos foram adicionados como resposta ao tempo presente, que é fortemente marcado pelas culturas da mídia e do mercado, e pelo crescimento de novos movimentos evangélicos, principalmente o pentecostalismo. O movimento musical chamado gospel resultou deste processo sócio-religioso e abriu caminho para outras expressões. Isso quer dizer que testemunhamos uma ampliação, sem precedentes, do mercado religioso e de formas religiosas mercadológicas. Há também uma relativização da negação do mundo, tão cara aos evangélicos brasileiros – o corpo é valorizado, assim como a diversão. Com isso, temos uma nova cultura experimentada, um novo modo de ser evangélico: privilégio à expressão musical, envolvimento no mercado e espaço para o lazer e o entretenimento.
O termo “gospel” não é abrangente demais para abrigar tantos elementos e manifestações?
Na verdade, podemos dizer que as diferenças que existem entre os grupos evangélicos estão bastante “sufocadas” por essa forma cultural. Uso o termo “gospel” para definir esse modo de vida porque ele emerge do fenômeno que ganhou corpo nos anos 90 – o movimento musical que detonou um processo e configurou algo muito maior. Surgiu uma forma cultural, um modo de vida gospel. Ele não é uma expressão organizada, delimitada; mas resulta do cruzamento de discursos, atitudes e comportamentos entre si e com a realidade sociopolítica e histórica.
Mas existem traços comuns entre todas essas manifestações?
Há, principalmente, três elementos. Em primeiro lugar, a busca de modernidade e inserção dos evangélicos na lógica social da tecnologia, da mídia, do mercado e da política. Numa segunda perspectiva, tivemos as transformações na forma de cultuar e na ética de costumes de um significativo número de igrejas. Veja que atualmente não é mais possível identificar o que é um culto batista, ou um culto metodista, ou um culto presbiteriano. Identificamos, em nossas pesquisas, uma só forma de cultuar com as mesmas características. E, em terceiro lugar, um discurso comum que privilegia temas como “vitória” e “poder”, com ênfase no aqui e agora, bem diferente da tradição evangélica, cuja pregação privilegiava temas como o céu e a segunda vinda de Cristo como compensação pelos sofrimentos do presente. Essa produção de cultura alcançou uma amplitude que perpassa, senão todas, a grande maioria das igrejas e denominações evangélicas brasileiras.
O louvor tem importância cada vez maior nos cultos. Por que as igrejas têm dado tanto valor à música?
Quem é Deus e quem é Jesus na maioria das canções? A maior parte das composições traz imagens da teofania monárquica do Antigo Testamento. Assim, Deus e Jesus são intensamente relacionados a imagens de reinado, majestade, glória, domínio e poder. Nesta linha, ganha novo sentido a figura dos levitas, que passam a ser destacados e traduzidos na contemporaneidade como “os ministros de louvor”, terminologia assumida nas igrejas. Disso resulta também o estabelecimento de uma hierarquia de ministérios. Há maior destaque aos levitas, e isso pode ser observado no lugar que ocupam no culto. Quem toca e canta é considerado ministro; já quem realiza outras atividades de serviço raramente é apresentado e destacado dessa maneira.
Essa nova cultura gospel tem espaço para a ética cristã?
Vivemos hoje uma forte crise de ética cristã quando privilegiamos um modo de ser baseado no “eu” e na experiência. Isso é totalmente incompatível com o Evangelho. E a coisa se agrava quando aprendemos que ser cristão é consumir bens e serviços religiosos e divertir-se não como mera assimilação da cultura do mercado, mas como expressão religiosa. Quer dizer, a cultura gospel permitiu aos evangélicos brasileiros a inserção de elementos profanos na forma de viver sua fé e de relacionar-se com o sagrado.
Em seu livro Explosão gospel, a senhora diz que o fenômeno mercadológico mudou o jeito de ser evangélico no país. Afinal, o que mudou?
Mercado religioso não é novidade. A oferta de produtos relacionados à religião e à fé sempre existiu. O que ocorre hoje é que o mundo vive um momento em que o mercado é o centro da vida socioeconômica, determina políticas e relações. E esse momento tem reflexos no cristianismo quando, por exemplo, experimentamos um crescimento sem precedentes do mercado religioso e os cristãos se tornam segmento de mercado.
Qual o efeito disso sobre a teologia evangélica?
Observamos hoje o surgimento de teologias que resultam deste predomínio da lógica do mercado na cultura dos povos. A teologia da prosperidade, que apregoa o sucesso material, especialmente o financeiro, como resultado da bênção de Deus, é fruto disso. A confissão positiva, do “eu que tudo pode” – então, a bênção passa a ser resultado do esforço pessoal –, e a noção da guerra espiritual, que combate as forças espirituais malignas que prejudicam o homem, também. Mas não é só isso. Existe a idéia de que, ao comprar um produto de orientação cristã, o crente não está só adquirindo um bem, mas chegando mais perto de Deus. Ou seja, o caráter sagrado atribuído aos produtos cristãos os tornam uma espécie de mediadores entre Deus e o consumidor. Por isso, as pessoas compram adesivos para que seu carro seja protegido do mal ou adquirem camisetas que vão guardá-las de infortúnios. Isso sem falar em gente que compra um CD daquele cantor “abençoado”, acreditando que ouvir as músicas pode até proporcionar uma cura.
O individualismo é uma marca do cristianismo contemporâneo?
Ocorre hoje uma exacerbação desse individualismo porque a cultura do mercado que predomina entre os povos bebe dessa fonte, o que se reflete na religiosidade evangélica. Por isso, as canções nunca trouxerem tanto o predomínio do “eu”, do gozo espiritual intimista; ao mesmo tempo, muito pouco ou quase nada se fala do valor do outro, do serviço, da partilha e da mutualidade.
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Nota: Selecionei somente a primeira parte da entrevista, em que a pesquisadora fala do cenário gospel. Não vejo o ecumenismo da mesma forma que ela aborda esse assunto no final da matéria. A íntegra você lê aqui.
Comentários
Pois é, o que não é mais novidade para ninguem, a religião, melhor, o sistema religioso (corporação religiosa) tornou-se uma industria capitalista. E aquilo que seria "trabalhar na hora" se tornou profissão, estabilidade financeira, ganha pão...
Que venham as crises, pois uma era de comodidade dá nisso.
recomendo esse livro. depois recomende tb.
"Não é possível ainda fazer previsões, mas uma intuição me leva a dizer que não podemos esperar a superação das diferenças. Ao contrário, deve haver um reforço da competição, pois membresia e números são chaves motivadoras de tal processo."
Contudo, aí falta um conhecimento sobre a lógica do mercado capitalista. Se as denominações estão tendo ainda mais essa característica. Logo, também, em pouco tempo iremos observar "parcerias", "holdings", "fusões"; que muitas vezes atraem mais, da maior lucro e por aí vai... ou até mesmo algo semelhante a um cartel para tentar quebrar a freguesia de uma determinada denominação.
Aliás, já não temos visto isso?
Um simples exemplo, nessa quarta-feira a IASD estará fazendo um evento (show musical para arrecandar doações para a África) numa Igreja da Assembléia de Deus, pelo o que me parece, que tem um auditório enorme para milhares de pessoas. Por que isso aconteceu? Ou seja, se já há permissão para uma rivalusar seu espaço para lucrar e divulgar sua imagem; é porque de algum modo, isso foi vantajoso ($$$).
Igreja --> Capitalismo --> Globalização --> Ecumenismo
Aliás, acho que um produto religioso que breve chegará serão os fundos de investimentos cristãos. E por que ainda não chegaram?
Outra coisa diferente é a reunião de igrejas para deletar diferenças e unificar as doutrinas. Nesse caso, a IASD deve estar alerta a fim de não cair nessa rede.
muito bem observado, Evandro.