É verdade que em 1913 já havia carros, aviões, elevador, estrelas da
música popular, cinema, adolescente rebelde e cheque devolvido. Mas nada disso tinha a dimensão que viria a
ter depois de 1913, quando os pacíficos aviões serviriam a 1ª Guerra Mundial
(1914-1918) e a música popular ganharia cada vez mais importância no cotidiano.
Em 31 de março de 1913, um concerto noturno com músicas de Arnold
Schoenberg, Anton Webern e Alban Berg, o trio revolucionário de Viena, não
chegou ao final. As estridências harmônicas das obras foram demais para o
público que passou da discussão verbal à luta física, sendo necessária a intervenção
policial. Mas houve quem admitisse que o som das brigas foi o mais harmonioso
naquela noite.
No dia 15 de maio, estreava Jeux, partitura de Debussy coreografada
por Nijínski. Talvez por causa da música sutil, fluente e encantória, não houve
desacato durante o balé que apresentava um triângulo amoroso e sensual, o que já seria escândalo suficiente.
As coisas entornariam de vez no dia 29 de maio, quando
estreou o balé A Sagração da Primavera (Le
Sacre du Printemps), do russo Igor Stravinski, com coreografia de Nijínski.
A estreia ocorreu no recém-inaugurado Théatre dês Champs-Elysées,
onde a elite de Paris, segundo conta Jean Cocteau, era “uma plateia elegante,
de vestidos decotados, pérolas, penas na cabeça e plumas de avestruz, lado a
lado com os paletós, farrapos espalhafatosos daquele gênero de estetas que
aplaudem tudo o que seja novo [...] mil nuances de esnobismo, superesnobismo e contraesnobismo”.
Naquele mês, circulavam boatos sobre uma nova música de Stravinski
e sobre uma nova e escandalosa coreografia de Nijínski. Para completar, Seguei Diáguilev,
diretor do Ballets Russes, prometia à imprensa “um novo frisson que sem dúvida vai
inspirar debates acalorados”.
De fato, naquela noite o público se dividiu entre fãs animados
e opositores entusiasmados. A música, que começa com um fagote suave e agudo,
foi gradualmente imprimindo um clima febril, com pulsações rítmicas brutais,
dissonâncias estrondosas, cortes súbitos e retomadas violentas, com os acentos
rítmicos deslocados perturbando espectadores que gostariam de ouvir somente
mais uma música inofensiva e depois sair para desfilar o figurino nos
restaurantes caros.
Nos ensaios, até Diáguilev ficou chocado com a ousadia rítmica de
Stravinski. “Vai continuar assim por muito tempo?”, perguntou. Stravinski
respondeu: “Até o fim, meu caro”. E o acorde extremamente dissonante combinado
com a acentuação rítmica fragmentada se repete 200 vezes!
Como era costume, o público não ficava indiferente às novidades. Junto com a música, ouviu-se no teatro aplausos e vaias,
gritos e assobios, gargalhadas de desdém e um burburinho crescente que por
pouco não causaram a interrupção do evento.
Além da chocante novidade musical apresentada, a coreografia
de Nijínski ajudou a aumentar o clima anárquico que dividiu espectadores e
críticos de arte. Em vez do gestual clássico, os bailarinos “tremiam,
sacudiam-se sapateavam, davam saltos rudes e violentos e giravam numa selvagem
dança de roda eslava”.
Atrás deles, um cenário que lembrava paisagens pagãs e
formas que pareciam extraídas dos sonhos.
Pierre Monteux, o maestro daquele tumultuada concerto,
relatou que “o auditório ficou em silêncio durante dois minutos, depois, de
repente, vaias e assobios desceram das galerias, acompanhadas logo em seguida
pela plateia. Houve espectadores que começaram a discutir e a atirar-se, uns nos
outros, tudo o que tinham à mão. Em breve esta cólera se dirigiu contra os
dançarinos e depois, ainda com mais violência, contra a orquestra, que era a
verdadeira responsável por esta crise musical. As coisas mais variadas
foram-nos arremessadas; apesar de tudo, continuamos a tocar”.
Depois de 1913, a música e nem o mundo seriam mais os
mesmos. Para entender como a sociedade ocidental passou a privilegiar cada vez
mais a marcação rítmica na música, volte-se a Stravinski e sua “Sagração”. As profundas
mudanças na estrutura musical e Schoenberg e cia. levaram os músicos eruditos a
novos experimentos e a uma distância cada vez maior de parâmetros como melodia
e harmonia, o que contribuiu para distanciar o público também.
Voltando à estreia da Sagração, apesar de tudo, ao final,
houve aplausos, que se repetiram nas apresentações subsequentes. Não quer dizer
que a música foi domesticada, mas que os ouvidos assimilaram o novo, como é
hábito do ser humano desde que se inventou a primeira flauta. Ainda bem que nossos
ouvidos contemporâneos, submetidos a toda espécie de balbúrdia sonora e
musical, ainda se deixam fascinar pelo novo e exuberante mundo musical apresentado por
Stravinski há cem anos.
Não se fazem mais novidades musicais como antigamente?
* * * * *
Versão de "A Sagração da Primavera" com a coreografia original de Nijínski, redescoberta por Millicent Hodson. Segundo ela, conseguiu-se recuperar os cenários e figurinos originais e pelo menos 85% da coreografia de 1913.
Escrevi este texto com informações copiadas descaradamente de Alex Ross, "O resto é ruído" (p. 69-70, 88-90), e de Osvaldo Colarusso.
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