No domingo à noite, dia 20, fui convidado para acompanhar ao piano um grupo musical que me deixou com uma santa comoção, se posso dizer assim. Não apenas a qualidade das vozes chamou a atenção da congregação. Certamente, não poderia passar despercebida uma outra qualidade: todos os componentes eram negros. Reunido em pouco menos de duas semanas, os cantores não formavam um grupo oficial. Era apenas um “coral black” para aquela ocasião especial.
De pré-adolescentes até um casal de idosos, passando por jovens brasileiros e angolanos, o grupo cantou músicas tradicionais e contemporâneas com o empolgante estilo de cantar a que nos acostumamos. Eu estava embevecido pela qualidade musical e agradecido por estar participando de um momento no qual eu voltei a compreender o que significa “alegre reverência”. Ninguém rodopiou, nem fez gestos extravagantes nem palreou línguas incompreensíveis. Somente música apropriadamente feliz que nos deixou felizes. Vale dizer que a banda (com metais, baixo e percussão feita no teclado) contribuiu muito para o alto nível de festa espiritual.
Isso me fez lembrar de duas questões que nunca se calam: como se pode ter “alegre reverência” com uma banda? E, por que nossa experiência sacro-musical aceita a influência dos negros norte-americanos mas rejeita os estilos afro-brasileiros?
Vamos à primeira pergunta. Se há uma polêmica na qual não gosto de entrar é na velha questão da bateria na igreja. Prefiro falar de formas de adoração, e naquela noite de domingo aconteceu algo sublime, mas sem clima musical fúnebre, ocorreu algo festivo, mas sem frenesi. Houve palmas, não para acompanhar o ritmo da música, mas após algumas daquelas canções. Não tinha como não aplaudir uma anciã cantando o hino “Ao meu redor”, acompanhada de um backing vocal feito pela sua família.
Ah, mas e como fica o “culto racional”? Digo que a racionalidade estava ali controlando a emotividade. Senão fosse assim, iríamos saltar, rolar e gritar. O que não podemos é confundir emoção, do que também somos feitos, com ênfase permanente no emocionalismo, nem devemos achar que culto racional é ritual intelectualista.
À segunda questão: por que, para o louvor cristão, preferimos os estilos afro-americanos aos gêneros de raiz afro-brasileira? Traduzindo, por que aceitamos a black music cristã e recusamos o samba e o pagode?
Por conta da conversão em massa dos negros americanos ao protestantismo, ainda que muitos preferissem a liberdade cúltica do pentecostalismo, os temas da religiosidade de raiz africana não chegaram à música popular dos Estados Unidos. Os lugares, os deuses, os ritos, tudo isso foi suplantado no processo de conversão de escravos e ex-escravos. Por exemplo, os spirituals que falam de liberdade usam as histórias e personagens bíblicos, mas não clamam a nenhum deus das religiões africanas. Mesmo a música secular americana, seja o jazz, o soul ou o rythm and blues, se refere ao Deus cristão.
Já no Brasil, a religiosidade dos escravos foi assimilada tanto pelo culto oficial católico quanto pela música popular brasileira. Os símbolos e as entidades de matriz africana (Oxóssim, Iemanjá, Iansã) são descritos em muitas canções populares do mesmo modo que possuem paralelos com os santos do catolicismo romano. Além disso, o samba está vinculado ao Carnaval assim como o pagode está associado às festas regadas ao sensualismo e à cerveja, dois itens rechaçados pela virtude protestante, digamos assim.
No culto evangélico americano, as canções não possuem originalmente uma percussão sincopada como a do samba, por exemplo. Os ritmos afro-brasileiros têm acentuada animogenia (que é a capacidade que uma música tem de ser “dançável”), e a dança, principalmente a dança associada à axé-music ou ao carnaval, é outro elemento banido das igrejas.
O protestantismo e suas variantes tradicionais se opõem aos cultos considerados pagãos. Sendo assim, eventuais referências diretas ou indiretas (letras, estilos e modos de cantar) à cultura popular brasileira vão encontrar resistências no espaço da liturgia da igreja.
Não posso omitir um dos maiores crimes da humanidade, o preconceito. Pessoas de sangue e carne como qualquer outro, os negros foram submetidos aos flagelos da escravidão, humilhados e destituídos por muito tempo de sua dignidade humana, tendo sua cultura reprimida. De outro lado, o eurocentrismo, essa ideologia que concede à cultura europeia a exclusividade e superioridade musical.
Por fim, embora se diga com propriedade que a black music religiosa foi incorporada pela música pop (Ray Charles transformou um estilo gospel na soul music) e a música pop tenha influenciado as produções do black gospel (já nos anos 40 se dizia que o repertório gospel estava assimilando os modos de performance os estilos de arranjo da música secular), há que se considerar uma questão sociogeográfica: os grupos religiosos protestantes brasileiros estavam bem distantes das fronteiras onde aconteciam mudanças, renovações e interinfluências musicais americanas.
Assim, desconhecia-se a origem de uma música ou o que estava sendo feito de determinado estilo e importava mais o que os brasileiros estavam fazendo com ele. Algo semelhante aconteceu em relação ao repertório sacro de origem europeia, do qual as congregações só conheciam as histórias mais elegantes e honrosas dos compositores eruditos.
Essas são algumas respostas às perguntas que às vezes fazemos. Não há como esgotar o assunto ou esclarecer tudo nesse espaço. Mas garanto que se, como dizem, black is beautiful, black christian é mais beautiful. Pelo menos naquela noite de domingo.
De pré-adolescentes até um casal de idosos, passando por jovens brasileiros e angolanos, o grupo cantou músicas tradicionais e contemporâneas com o empolgante estilo de cantar a que nos acostumamos. Eu estava embevecido pela qualidade musical e agradecido por estar participando de um momento no qual eu voltei a compreender o que significa “alegre reverência”. Ninguém rodopiou, nem fez gestos extravagantes nem palreou línguas incompreensíveis. Somente música apropriadamente feliz que nos deixou felizes. Vale dizer que a banda (com metais, baixo e percussão feita no teclado) contribuiu muito para o alto nível de festa espiritual.
Isso me fez lembrar de duas questões que nunca se calam: como se pode ter “alegre reverência” com uma banda? E, por que nossa experiência sacro-musical aceita a influência dos negros norte-americanos mas rejeita os estilos afro-brasileiros?
Vamos à primeira pergunta. Se há uma polêmica na qual não gosto de entrar é na velha questão da bateria na igreja. Prefiro falar de formas de adoração, e naquela noite de domingo aconteceu algo sublime, mas sem clima musical fúnebre, ocorreu algo festivo, mas sem frenesi. Houve palmas, não para acompanhar o ritmo da música, mas após algumas daquelas canções. Não tinha como não aplaudir uma anciã cantando o hino “Ao meu redor”, acompanhada de um backing vocal feito pela sua família.
Ah, mas e como fica o “culto racional”? Digo que a racionalidade estava ali controlando a emotividade. Senão fosse assim, iríamos saltar, rolar e gritar. O que não podemos é confundir emoção, do que também somos feitos, com ênfase permanente no emocionalismo, nem devemos achar que culto racional é ritual intelectualista.
À segunda questão: por que, para o louvor cristão, preferimos os estilos afro-americanos aos gêneros de raiz afro-brasileira? Traduzindo, por que aceitamos a black music cristã e recusamos o samba e o pagode?
Por conta da conversão em massa dos negros americanos ao protestantismo, ainda que muitos preferissem a liberdade cúltica do pentecostalismo, os temas da religiosidade de raiz africana não chegaram à música popular dos Estados Unidos. Os lugares, os deuses, os ritos, tudo isso foi suplantado no processo de conversão de escravos e ex-escravos. Por exemplo, os spirituals que falam de liberdade usam as histórias e personagens bíblicos, mas não clamam a nenhum deus das religiões africanas. Mesmo a música secular americana, seja o jazz, o soul ou o rythm and blues, se refere ao Deus cristão.
Já no Brasil, a religiosidade dos escravos foi assimilada tanto pelo culto oficial católico quanto pela música popular brasileira. Os símbolos e as entidades de matriz africana (Oxóssim, Iemanjá, Iansã) são descritos em muitas canções populares do mesmo modo que possuem paralelos com os santos do catolicismo romano. Além disso, o samba está vinculado ao Carnaval assim como o pagode está associado às festas regadas ao sensualismo e à cerveja, dois itens rechaçados pela virtude protestante, digamos assim.
No culto evangélico americano, as canções não possuem originalmente uma percussão sincopada como a do samba, por exemplo. Os ritmos afro-brasileiros têm acentuada animogenia (que é a capacidade que uma música tem de ser “dançável”), e a dança, principalmente a dança associada à axé-music ou ao carnaval, é outro elemento banido das igrejas.
O protestantismo e suas variantes tradicionais se opõem aos cultos considerados pagãos. Sendo assim, eventuais referências diretas ou indiretas (letras, estilos e modos de cantar) à cultura popular brasileira vão encontrar resistências no espaço da liturgia da igreja.
Não posso omitir um dos maiores crimes da humanidade, o preconceito. Pessoas de sangue e carne como qualquer outro, os negros foram submetidos aos flagelos da escravidão, humilhados e destituídos por muito tempo de sua dignidade humana, tendo sua cultura reprimida. De outro lado, o eurocentrismo, essa ideologia que concede à cultura europeia a exclusividade e superioridade musical.
Por fim, embora se diga com propriedade que a black music religiosa foi incorporada pela música pop (Ray Charles transformou um estilo gospel na soul music) e a música pop tenha influenciado as produções do black gospel (já nos anos 40 se dizia que o repertório gospel estava assimilando os modos de performance os estilos de arranjo da música secular), há que se considerar uma questão sociogeográfica: os grupos religiosos protestantes brasileiros estavam bem distantes das fronteiras onde aconteciam mudanças, renovações e interinfluências musicais americanas.
Assim, desconhecia-se a origem de uma música ou o que estava sendo feito de determinado estilo e importava mais o que os brasileiros estavam fazendo com ele. Algo semelhante aconteceu em relação ao repertório sacro de origem europeia, do qual as congregações só conheciam as histórias mais elegantes e honrosas dos compositores eruditos.
Essas são algumas respostas às perguntas que às vezes fazemos. Não há como esgotar o assunto ou esclarecer tudo nesse espaço. Mas garanto que se, como dizem, black is beautiful, black christian é mais beautiful. Pelo menos naquela noite de domingo.
Comentários
Mário Wilson. disse...
Olá Joêzer!
Tenho apreciado as tuas matérias e da forma que as articulas.Esta em especial me chamou a atenção, é bem verdade que existe uma cauterização por parte de alguns membros a respeito do louvor alegre ( sem frénesi e barulho).A minha visão de Deus é um Deus dinâmico e não estático, o ser humano tem sencibilidade emotiva... Jesus chorou. Estive numa apresentação de um grupo da igreja e no final ouvi reclamação por parte de alguem que dizia que houve falta de reverência no louvor, fiquei indgnado e disse pra essa pessoa ir em outras denominações e ver o que eles chamam de reverência q ela ia se escandalizar. Gosto de alegria no louvor, inovações salutares.
essa expressão que você usou é ótima: inovações salutares. é possível inovar buscando o que é apropriado e saudável para a congregação.
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