Não digo que Saramago é um mau escritor. Mas na maioria das vezes ele é ilegível. Sua prosa encharcada de ironia, suas frases prenhes de sabedoria universal, suas descrições entrelaçadas de mordacidade e desilusão são, assim como os adjetivos que alinhei, bastante cansativas por que ele mantém o estilo da primeira à última página. Tirando As Intermitências da Morte, mal consegui ultrapassar a página 100 de outro livro do escritor português.
De livro em livro, o estilo se repete. Não há travessões nem aspas para separar os diálogos - a ele lhe basta a fluidez da vírgula, dirão seus admiradores-sem-fim; suas histórias reencenam moralidades que, se ditas por um homem de religião, seriam escanteadas como coisas de uma mente canhestra e conservadora. Claro que deve haver livros interessantes e certamente geniais na obra do escritor fora aquele que já citei. Mas não é sempre que me deixo iludir.
José Saramago, o escriba das páginas sem ponto final, o escrevinhador de prosopopeias e fábulas premiadas, é um sentimental. Como é que é, indagará seu fã calouro de Sociologia, isso não é possível, dirá sua fã matriculada nas oficinas vespertinas de antroposofia no casarão histórico. Sim, e não é pelo seu choro desabrido ao final da projeção de Ensaio sobre a Cegueira ao lado do cineasta Fernando Meirelles. A razão de ser sentimental tem a ver com sua incansável diatribe contra Deus.
Em seu livro mais recente (será lançado em outubro), Caim, Saramago encontra uma justificativa teologicamente incorreta para redimir o assassino de Abel. Posando de advogado de Caim, Saramago distorce o contexto da história bíblica e denuncia a Deus como o mentor intelectual do crime por ter desprezado o sacrifício de Caim.
Mas não é um sentimental, esse Saramago? Que escritor de bom coração! Ele diz também que a Bíblia é um livro forjado, que Deus é uma divindade inventada, que o bem e o mal são coisas da nossa cabeça, que os religiosos são gente escrava de suas invenções e necessidades espirituais. Continua sentimental. Veja como no meio desse povo que pesquisa as culturas, que observa os partidos políticos, que analisa a História, há gente que fragmenta seu objeto de estudo para não confundir as diferenças (ótimo), há gente que põe todo texto no seu devido contexto (maravilha), mas na hora de falar de Deus e religião perde as estribeiras e desanda a descontextualizar, a confundir, a generalizar, a dizer que Deus é invenção de César.
Há algum tempo, li um comentário que passava a régua na religião e afirmava que os cristãos são uns nazistas por que separam entre salvos e perdidos, justos e injustos. Na Bíblia, está escrito que esse julgamento quem fará é Deus, o Justo Juiz, e que há um Mediador entre Ele e os seres humanos que viveu na pele a humanidade, Jesus. Felizmente, não serão nem os ateus nem os cristãos que julgarão o caráter e a fé do homem. Porém, a raiva sentimental obscurece a mente que deixa de interpretar corretamente a Bíblia e não vê que eram os nazistas que segregavam os judeus, os ciganos, os não-arianos, enfim. E não tinha essa de judeu bom ou judeu malvado. Bastava ser oposição e pronto, extermínio nele. Ressalto que o comentarista mais tarde reconheceu o exagero.
Em dezembro de 2008, Saramago disse que seu comunismo era uma "condição hormonal". Estão aí os registros do passado de destempero "hormonal" na Rússia, na China, no Leste Europeu. Lembra da fábula do escorpião que convenceu o sapo a levá-lo ao outro lado do rio? Apesar de ter prometido que não usaria seu ferrão traiçoeiro, eis que no meio do rio, o sapo, vítima da peçonha, ainda pergunta, no estilo sem-aspas, Por que você fez isso se vamos morrer afogados os dois, e o escorpião responde, Não pude evitar, é minha natureza.
Ser comunista por opção política é uma coisa, mas ter o comunismo inscrito nos hormônios é a escravidão de verdade. Depois dizem por aí que a religião é resultado de ignorância e que o ateísmo é uma escolha natural dos mais inteligentes. Isso não é obra de Marx, mas sim de um Mad Marx.
Saramago, com suas respeitáveis cãs, navega nas inquietas águas dos seus hormônios, é um sentimental hormonauta. Alguém escreveu que o crente em Deus está na infância do pensamento humano. Claro que os esclarecidos adultos seriam os ateus, né? Se for para generalizar, cá pra mim, penso que o descrente na existência de Deus, na verdade, é como aquele adolescente que se revolta contra regras e autoridades e acha que já sabe tudo, embora viva repetindo orgulhosamente que só sabe que nada sabe.
C. S. Lewis escreveu que, em termos de religião, a humanidade se divide em duas categorias: aqueles que dizem, Senhor, seja feita Tua vontade, e aqueles para quem Deus se vê obrigado a dizer, Está bem, faça do seu jeito, então. Sei que há muitos que, por se acharem os porta-vozes da vontade de Deus, desprezam, odeiam e até matam. Mas estes também estão agindo segundo a própria vontade. Por outro lado, quem escolhe consciente e deliberadamente agir como Caim, poderá sempre, mas não para sempre, recorrer aos auspícios do advogado Saramago ou então dizer simplesmente, Foi culpa dos meus hormônios.
De livro em livro, o estilo se repete. Não há travessões nem aspas para separar os diálogos - a ele lhe basta a fluidez da vírgula, dirão seus admiradores-sem-fim; suas histórias reencenam moralidades que, se ditas por um homem de religião, seriam escanteadas como coisas de uma mente canhestra e conservadora. Claro que deve haver livros interessantes e certamente geniais na obra do escritor fora aquele que já citei. Mas não é sempre que me deixo iludir.
José Saramago, o escriba das páginas sem ponto final, o escrevinhador de prosopopeias e fábulas premiadas, é um sentimental. Como é que é, indagará seu fã calouro de Sociologia, isso não é possível, dirá sua fã matriculada nas oficinas vespertinas de antroposofia no casarão histórico. Sim, e não é pelo seu choro desabrido ao final da projeção de Ensaio sobre a Cegueira ao lado do cineasta Fernando Meirelles. A razão de ser sentimental tem a ver com sua incansável diatribe contra Deus.
Em seu livro mais recente (será lançado em outubro), Caim, Saramago encontra uma justificativa teologicamente incorreta para redimir o assassino de Abel. Posando de advogado de Caim, Saramago distorce o contexto da história bíblica e denuncia a Deus como o mentor intelectual do crime por ter desprezado o sacrifício de Caim.
Mas não é um sentimental, esse Saramago? Que escritor de bom coração! Ele diz também que a Bíblia é um livro forjado, que Deus é uma divindade inventada, que o bem e o mal são coisas da nossa cabeça, que os religiosos são gente escrava de suas invenções e necessidades espirituais. Continua sentimental. Veja como no meio desse povo que pesquisa as culturas, que observa os partidos políticos, que analisa a História, há gente que fragmenta seu objeto de estudo para não confundir as diferenças (ótimo), há gente que põe todo texto no seu devido contexto (maravilha), mas na hora de falar de Deus e religião perde as estribeiras e desanda a descontextualizar, a confundir, a generalizar, a dizer que Deus é invenção de César.
Há algum tempo, li um comentário que passava a régua na religião e afirmava que os cristãos são uns nazistas por que separam entre salvos e perdidos, justos e injustos. Na Bíblia, está escrito que esse julgamento quem fará é Deus, o Justo Juiz, e que há um Mediador entre Ele e os seres humanos que viveu na pele a humanidade, Jesus. Felizmente, não serão nem os ateus nem os cristãos que julgarão o caráter e a fé do homem. Porém, a raiva sentimental obscurece a mente que deixa de interpretar corretamente a Bíblia e não vê que eram os nazistas que segregavam os judeus, os ciganos, os não-arianos, enfim. E não tinha essa de judeu bom ou judeu malvado. Bastava ser oposição e pronto, extermínio nele. Ressalto que o comentarista mais tarde reconheceu o exagero.
Em dezembro de 2008, Saramago disse que seu comunismo era uma "condição hormonal". Estão aí os registros do passado de destempero "hormonal" na Rússia, na China, no Leste Europeu. Lembra da fábula do escorpião que convenceu o sapo a levá-lo ao outro lado do rio? Apesar de ter prometido que não usaria seu ferrão traiçoeiro, eis que no meio do rio, o sapo, vítima da peçonha, ainda pergunta, no estilo sem-aspas, Por que você fez isso se vamos morrer afogados os dois, e o escorpião responde, Não pude evitar, é minha natureza.
Ser comunista por opção política é uma coisa, mas ter o comunismo inscrito nos hormônios é a escravidão de verdade. Depois dizem por aí que a religião é resultado de ignorância e que o ateísmo é uma escolha natural dos mais inteligentes. Isso não é obra de Marx, mas sim de um Mad Marx.
Saramago, com suas respeitáveis cãs, navega nas inquietas águas dos seus hormônios, é um sentimental hormonauta. Alguém escreveu que o crente em Deus está na infância do pensamento humano. Claro que os esclarecidos adultos seriam os ateus, né? Se for para generalizar, cá pra mim, penso que o descrente na existência de Deus, na verdade, é como aquele adolescente que se revolta contra regras e autoridades e acha que já sabe tudo, embora viva repetindo orgulhosamente que só sabe que nada sabe.
C. S. Lewis escreveu que, em termos de religião, a humanidade se divide em duas categorias: aqueles que dizem, Senhor, seja feita Tua vontade, e aqueles para quem Deus se vê obrigado a dizer, Está bem, faça do seu jeito, então. Sei que há muitos que, por se acharem os porta-vozes da vontade de Deus, desprezam, odeiam e até matam. Mas estes também estão agindo segundo a própria vontade. Por outro lado, quem escolhe consciente e deliberadamente agir como Caim, poderá sempre, mas não para sempre, recorrer aos auspícios do advogado Saramago ou então dizer simplesmente, Foi culpa dos meus hormônios.
Leia também: Saramago "redime" Caim no novo romance
Comentários
Ganharás as suas graças por isso.
Deus, mais não é do que algo inverossímil. Não sobrevive à racionalidade justa e honesta... Saramago terá a eternidade que o homem tiver! Passarão milénios e os vindouros contemplarão as suas palavras e verão na sua fina ironia e no seu corrosivo cepticismo um comovido amor pela humanidade, sofrido por lhe conhecer a intrínseca podridão.
Abandona deus, amigo!! Aqui na Europa, abandona-mo-lo e vê no que resultou: Um imensa geografia que serve de paradigma ao mundo do rumo que ele deve tomar.
As ideologias é outra coisa nefasta como as religiões. Tudo o que pretende ser verdade absoluta tende a castrar da liberdade o homem. Abaixo os dogmas!
a Europa foi erguida com base no pensamento cristão. O pensamento católico já é outra coisa e creio que a diatribe de Saramago contra Deus na verdade é contra o Deus concebido pela igreja romana.
aliás, Saramago, o mais religioso dos escritores, não abandonou Deus. no ótimo Ensaio sobre a cegueira (embora eu tenha gostado mais do filme), ele fala de como o perseguidor de cristãos Saulo se tornou o apóstolo Paulo após ficar cego - uma paráfrase bela e inegável para o homem.
como escritor, Saramago me cansa com o ceticismo e a ironia ditas finas. eu as acho por vezes até grosseiras, não pela opinião do escritor, mas pela redundância.
mas sei que isso é uma questão de anuência literária. com Saramago, não tenho a mesma paciência que dedico à Thomas Mann, Jane Austen ou Eça.
não tenho como abandonar Deus, meu caro, se é nEle que encontro o sentido e o paradigma de vida.
agradeço tua opinião articulada e serás sempre bem-vindo por estas bandas virtuais