Pular para o conteúdo principal

Dunga, o chato que satisfaz

Há mais de 30 anos, a canção “Feijão Maravilha” exaltava as virtudes únicas do prato nacional. “Dez entre dez brasileiros preferem feijão”, começava a música. E dizia que o feijão era “o preto que satisfaz”. Eu era muito novo pra entender se essa frase era preconceito ou elogio. Além disso, a canção era tema de novela e na minha casa não tinha TV.

Televisão na minha casa só na Copa do Mundo de 82. Foi quando assisti ao desfile de supercraques como Cerezzo, Falcão, Zico, Sócrates, Leandro, Júnior e Éder. Mas perdemos para a Itália de Paolo Rossi e vimos algo único: a derrota que satisfaz. Poucas vezes se exaltou tanto um time que não ganhou. Aquele time era genial; e o YouTube não deixa minha memória mentir.

A poucos dias da Copa da África do Sul, vimos a seleção de Dunga, o técnico com apelido de conto de fadas mas de futebol nem tão fantástico assim. Era aparecer um jogador na lista de convocados pra gente saber que aquela era a seleção do anão: Josué. AH NÃO. Kleberson. AH NÃO. Elano. AH NÃO.

O povo querendo ver os meninos-show do Santos na seleção e Dunga nos negando a mera possibilidade de espetáculo como se fosse um prazer proibido. Ele deu preferência para jogador conhecido e velho de guerra. Temeu. Apequenou-se. Que lhe custava chamar ao menos o jovem craque Paulo Henrique Ganso, no mínimo, um legítimo substituto para o caso de uma contusão de Kaká, além de ser muito superior a Elano ou Ramires?

Dunga não tem medo de ser chato. Na entrevista após a convocação invocou o sacrossanto patriotismo para que marchemos cegamente junto com o selecionado brasileiro na Copa, ressaltou o comprometimento de jogadores medianos em oposição a jogadores com lampejos de gênio, como Neymar e Ronaldinho Gaúcho.

Por último, Dunga refrescou nossa memória. Foi com esses jogadores (alguns deles, excelentes – o goleiro Júlio César, o ala Maicon, o zagueiro Lúcio, o atacante Robinho) que a seleção ganhou Copa América e Copa das Confederações; foi com esse time que deu baile em Portugal, Itália e Argentina. A gente quer mais o quê?

Entre uma seleção que se arrisca ao espetáculo e outra que se arrisca a vencer ou vencer, a CBF prefere a segunda. Dunga é o chato que satisfaz. E isso pode ser um elogio.


Comentários

Jayme Alves disse…
Meses depois da final da Copa de 70, Pasolini, grande cineasta italiano, escreveu um célebre artigo intitulado "Futebol de prosa e futebol de poesia" (http://ims.uol.com.br/Na_Integra/D242), no qual emprestava, para a análise do futebol, o instrumental fornecido pela então reinante semiologia, enxergando o jogo como um sistema de signos que poderiam
se combinar em diferentes estilos.

Após várias considerações, ele faz, sem atribuições valorativas,a distinção entre a prosa estetizante e realista dos italianos e a poesia brasileira. Os seguintes trechos são bastante esclarecedores:

"O futebol de prosa é o do chamado sistema (o futebol europeu). Nesse esquema, o gol é confiado à conclusão, possivelmente por um “poeta realista” como Riva, mas deve derivar de uma organização de jogo coletivo, fundado por uma série de passagens “geométricas”, executadas segundo as regras do código..."

"O futebol de poesia é o latino-americano. Esquema que, para ser realizado, demanda uma capacidade monstruosa de driblar (coisa que na Europa é esnobada em nome da “prosa coletiva”): nele, o gol pode ser inventado por qualquer um e de qualquer posição. Se o drible e o gol são o momento individualista-poético do futebol, o futebol brasileiro é, portanto, um futebol de poesia."

Pensando na convocação do Dunga e no ardor com que ele valoriza o sistema, a construção coletiva e ordenada das jogadas, vemos como atualmente a seleção brasileira é muito mais prosaica do que poética e seus jogos estão repletos de parágrafos corretos,fiéis às normas ortográficas e sintáticas vigentes, mas publicam poucos versos desconcertantes.

Se fosse revisar hoje o seu artigo, acho que Pasolini precisaria buscar outros exemplos para a sua argumentação...
joêzer disse…
"a seleção brasileira é muito mais prosaica do que poética e seus jogos estão repletos de parágrafos corretos,fiéis às normas ortográficas e sintáticas vigentes, mas publicam poucos versos desconcertantes". Perfeito, Jayme. Se fosse um livro, o time de Dunga seria uma tese acadêmica onde é proibido florear.

Pasolini foi seduzido pelo poema em linha reta que era uma corrida de Jairzinho, pela parábola dos lançamentos de Gérson, pela fábula do jogo de Tostão, pela onomatopeia do chute de Rivelino e pelos superlativos de Pelé.

Postagens mais visitadas deste blog

o mito da música que transforma a água

" Música bonita gera cristais de gelo bonitos e música feia gera cristais de gelo feios ". E que tal essa frase? " Palavras boas e positivas geram cristais de gelo bonitos e simétricos ". O autor dessa teoria é o fotógrafo japonês Masaru Emoto (falecido em 2014). Parece difícil alguém com o ensino médio completo acreditar nisso, mas não só existe gente grande acreditando como tem gente usando essas conclusões em palestras sobre música sacra! O experimento de Masaru Emoto consistiu em tocar várias músicas próximo a recipientes com água. Em seguida, a água foi congelada e, com um microscópio, Emoto analisou as moléculas de água. Os cristais de água que "ouviram" música clássica ficaram bonitos e simétricos, ao passo que os cristais de água que "ouviram" música pop eram feios. Não bastasse, Emoto também testou a água falando com ela durante um mês. Ele dizia palavras amorosas e positivas para um recipiente e palavras de ódio e negativas par

paula fernandes e os espíritos compositores

A cantora Paula Fernandes disse em um recente programa de TV que seu processo de composição é, segundo suas palavras, “altamente intuitivo, pra não dizer mediúnico”. Foi a senha para o desapontamento de alguns admiradores da cantora.  Embora suas músicas falem de um amor casto e monogâmico, muitos fãs evangélicos já estão providenciando o tradicional "vou jogar fora no lixo" dos CDs de Paula Fernandes. Parece que a apologia do amor fiel só é bem-vinda quando dita por um conselheiro cristão. Paula foi ao programa Show Business , de João Dória Jr., e se declarou espírita.  Falou ainda que não tem preconceito religioso, “mesmo porque Deus é um só”. Em seguida, ela disse que não compõe sozinha, que às vezes, nas letras de suas canções, ela lê “palavras que não sabe o significado”. O que a cantora quis dizer com "palavras que não sei o significado"? Fiz uma breve varredura nas suas letras e, verificando que o nível léxico dos versos não é de nenhu

Nabucodonosor e a música da Babilônia

Quando visitei o museu arqueológico Paulo Bork (Unasp - EC), vi um tijolo datado de 600 a.C. cuja inscrição em escrita cuneiforme diz: “Eu sou Nabucodonosor, rei de Babilônia, provedor dos templos de Ezágila e Égila e primogênito de Nebupolasar, rei de Babilônia”. Lembrei, então, que nas minhas aulas de história da música costumo mostrar a foto de uma lira de Ur (Ur era uma cidade da região da Mesopotâmia, onde se localizava Babilônia e onde atualmente se localiza o Iraque). Certamente, a lira integrava o corpo de instrumentos da música dos templos durante o reinado de Nabucodonosor. Fig 1: a lira de Ur No sítio arqueológico de Ur (a mesma Ur dos Caldeus citada em textos bíblicos) foram encontradas nove liras e duas harpas, entre as quais, a lira sumeriana, cuja caixa de ressonância é adornada com uma escultura em forma de cabeça bovina. As liras são citadas em um dos cultos oferecidos ao rei Nabucodonosor, conforme relato no livro bíblico de Daniel, capítulo 3. Aliás, n