O que é música? Para dois músicos do filme Todas as Manhãs do Mundo, a música tem um valor diametralmente oposto. Sainte-Colombe é um mestre na arte de tocar viola da gamba. Admirado pela corte francesa do século XVII, Sainte-Colombe torna-se um recluso quase intratável após a súbita morte da esposa. Um homem rude, mas dotado de transbordante criatividade. Passa a tocar solitariamente e dá aulas apenas para suas duas filhas. Resistindo aos convites para tocar na corte, ele reage asperamente: “Prefiro minhas roupas de pano às vossas perucas da moda. Prefiro as minhas galinhas aos violinos do rei”.
O outro músico é Marin Marais, jovem que procura o mestre Sainte-Colombe com a intenção de ser seu discípulo musical. A relação entre eles será sempre tempestuosa. O talento, a dedicação e a visão de mundo de ambos os músicos estará separada por um abismo de consagração: o aluno quer exibir-se para a corte, o mestre quer tão-somente tocar música. Sainte-Colombe: “Jovem senhor, vós fazeis música. Mas não sois músico”. E dirá também: “Senhor, vós agradais a um rei visível. Eu aceno com a mão para algo invisível”.
Quando os anos transcorrem e a placidez da maturidade faz assentar a poeira da soberba juvenil, um agora idoso Marais percebe que foi iludido pelo fogo-fátuo do virtuosismo e do exibicionismo relembra dolorosamente que não tem prazer algum na sua velhice de fama e fortuna na corte. É quando volta ao antigo mestre e, ambos, enfim, retomam o diálogo perdido:
“Senhor, o que procurais vós na música?” – lhe pergunta Sainte-Colombe.
“Procuro os lamentos e as lágrimas” – responde Marais.
Ou então:
“A música nos serve para falar somente aquilo que a palavra não é capaz. Assim, ela não é completamente humana. Descobriste, então, que ela não é para o rei?”
E ambos tocam Le Pleurs (Os prantos), de Sainte-Colombe, música que traduz a intensidade emocional do momento.
É como se a história nos perguntasse ao final: “De que vale ganhar o favor do rei e perder a alma?”. Não é que seja fácil ganhar a admiração popular. Porém, mais difícil é fazer a música que não grita, que não busca a emoção gratuita e os favores de um público ávido por fortes sensações musicais, que podem até ser muito divertidas, mas não são belas. O mundo, a rua, a igreja, a sala de concerto e o palco estão repletos de gafanhotos da música. São os que fazem grande alarido, mas apenas berram, devoram e se vão. São esses que fazem música, mas não são músicos. São esses que acenam para um público visível e enlouquecido por fotos, autógrafos e souvenirs – é o público que vai ver o ídolo e não ouvir uma música.
Num discurso para formandos do Conservatório de Música do Rio de Janeiro, Mário de Andrade, que lecionava ali, disse: "Quando pergunto aos alunos o que vieram fazer aqui, todos dizem: Vim estudar piano; vim estudar violino, e assim por diante. Nunca encontrei um que dissesse: Vim estudar música.
É assim ainda. Muitos querem ser cantores, regentes e instrumentistas. Mas quantos querem fazer música?
Comentários
"sejamos músicos e, consequentemente, façamos música, mesmo em secreto...
belo texto
Shabbat Shalom"
mas do outro jeito não ficou ruim...
estou escrevendo uma música no momento em cima de uma letra do Mario Jorge... tema pesado: 'Somos Mortais'
quando tiver pronta lhe envio
Shalom
escrevi um artigo sobre as diferenças poéticas, musicais e teológicas (de leve) entre duas músicas que se chamam "Se eu quiser falar com Deus", uma do Mário Jorge e outra do Gil. Não sei se ficou grandes proezas, mas foi selecionado pra um simpósio de musicologia no Rio.
depois se vc me puder passar o contato do Mário Jorge, posso enviar pra ele. embora os autores não gostem de análises da própria obra, vai que o homem aprova, né? rsrs
abraços
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