Pular para o conteúdo principal

a lei musical da selva depois de 22 abril de 1500

Quando alguém gritou “Terra à vista” naquele de abril de 1500, os tripulantes de Pedro Álvares Cabral não faziam ideia de como seria a música dos nativos da terra de Santa Cruz. A primeira música que os exploradores ouviram quando chegaram aqui pode não ter sido a música da primeira missa rezada por esses lados do Atlântico. Pode ter sido um canto indígena.

O escrivão Pero Vaz de Caminha anotou isto em carta a El Rey: “Eles [os índios] folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita ... dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso...”

A epístola de Pero Vaz aos portugueses já adianta que o processo de submissão cultural dos nativos os levaria a praticar obrigatoriamente a música “dos nossos”, a música luso-europeia.

Os padres jesuítas, desde sua chegada em 1549, empregavam o canto como instrumento de catequese nas aldeias indígenas e seus aprendizes participavam das atividades musicais em missas e ofícios.

Imbuídos da missão de salvar as almas indígenas, eles utilizaram o canto e a prática instrumental para ensinar os princípios e valores cristãos, fazendo uma substituição de temas e melodias na prática musical dos nativos. Era assim que trabalhava o padre Aspilcueta Navarro, que, segundo o relato do padre Manuel da Nóbrega, “faz[ia] cantar aos meninos certas orações que lhes ensinou em sua língua”.

Mas já havia quem se queixasse da prática de colocar letra cristã em melodia da terra. Em carta de 1552 ao padre Manuel da Nóbrega, o bispo Pedro Sardinha reclamou que os meninos entoavam “cantares de Nossa Senhora em tom gentílico” [gentílico ainda era uma expressão usada para diferenciar cristãos e gentios ou não cristãos].

O padre Manuel da Nóbrega respondeu que uma forma de atrair os índios era “cantar cantigas de Nosso Senhor em sua língua e pelo seu tom”.

No fim, venceu o modelo de evangelização que recrutava as almas dos índios ao mesmo tempo em que descartava sua cultura musical. Assim, três anos após a chegada dos jesuítas, o método de catequese em que um texto cristão em língua indígena, como o tupi, era cantado com uma melodia também indígena foi proibido, passando a ser permitido apenas o método que utilizava um texto cristão em tupi cantado com melodia europeia, a música “dos nossos”.

Nesse sentido, as seguintes linhas da saudação angélica em tupi só poderiam ser cantadas com melodia europeia:
Sancta Maria Toupan su eieruré demembouira supé
tigburon oreue, ore memoan angat paua supé.
Emona ne toico Iesus.

Ao atribuir caráter pagão às sonoridades indígenas, exploradores e evangelizadores tiveram um bom motivo para promover a iniciação dos nativos em lições de instrumentos e melodias mais associadas à música sacra europeia. Ao mesmo tempo em que os índios ganhavam machados e violas do colonizador, eles se distanciavam de sua prática musical de origem.

Se a história se repete, ela se repete com variações, tendo em vista as interdições musicais modernas e o caso da proibição colonial de se cantar texto cristão com música nativa. Na nova lei da selva brasileira, prevaleceu a música do mais forte.




*****
Extraí as citações dos livros:
CASTAGNA, Paulo. Música na América Portuguesa. In: Moraes; Saliba. História e Música no Brasil. São Paulo: Alameda, 2010.
HOLLER, Marcos. Os jesuítas e a música no Brasil Colonial. Campinas: Editora Unicamp, 2010. 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

o mito da música que transforma a água

" Música bonita gera cristais de gelo bonitos e música feia gera cristais de gelo feios ". E que tal essa frase? " Palavras boas e positivas geram cristais de gelo bonitos e simétricos ". O autor dessa teoria é o fotógrafo japonês Masaru Emoto (falecido em 2014). Parece difícil alguém com o ensino médio completo acreditar nisso, mas não só existe gente grande acreditando como tem gente usando essas conclusões em palestras sobre música sacra! O experimento de Masaru Emoto consistiu em tocar várias músicas próximo a recipientes com água. Em seguida, a água foi congelada e, com um microscópio, Emoto analisou as moléculas de água. Os cristais de água que "ouviram" música clássica ficaram bonitos e simétricos, ao passo que os cristais de água que "ouviram" música pop eram feios. Não bastasse, Emoto também testou a água falando com ela durante um mês. Ele dizia palavras amorosas e positivas para um recipiente e palavras de ódio e negativas par

paula fernandes e os espíritos compositores

A cantora Paula Fernandes disse em um recente programa de TV que seu processo de composição é, segundo suas palavras, “altamente intuitivo, pra não dizer mediúnico”. Foi a senha para o desapontamento de alguns admiradores da cantora.  Embora suas músicas falem de um amor casto e monogâmico, muitos fãs evangélicos já estão providenciando o tradicional "vou jogar fora no lixo" dos CDs de Paula Fernandes. Parece que a apologia do amor fiel só é bem-vinda quando dita por um conselheiro cristão. Paula foi ao programa Show Business , de João Dória Jr., e se declarou espírita.  Falou ainda que não tem preconceito religioso, “mesmo porque Deus é um só”. Em seguida, ela disse que não compõe sozinha, que às vezes, nas letras de suas canções, ela lê “palavras que não sabe o significado”. O que a cantora quis dizer com "palavras que não sei o significado"? Fiz uma breve varredura nas suas letras e, verificando que o nível léxico dos versos não é de nenhu

Bob Dylan e a religião

O cantor e compositor Bob Dylan completou 80 anos de idade e está recebendo as devidas lembranças. O cantor não é admirado pela sua voz ou pelos seus solos de guitarra. Suas músicas não falam dos temas românticos rotineiros, seu show não tem coreografias esfuziantes e é capaz de este que vos escreve ter um ataque de sonolência ao ouvi-lo por mais de 20 minutos. Mas Bob Dylan é um dos compositores mais celebrados por pessoas que valorizam poesia - o que motivou a Academia Sueca a lhe outorgar um prêmio Nobel de Literatura. De fato, sem entrar na velha discussão "letra de música é poesia?", as letras das canções de Dylan possuem lirismo e força, fugindo do tratamento comum/vulgar dos temas políticos, sociais e existenciais. No início de sua carreira musical, Dylan era visto pelos fãs e pela crítica como o substituto do cantor Woody Guthrie, célebre pelo seu ativismo social e pela simplicidade de sua música. Assim como Guthrie, o jovem Bob Dylan empunhava apenas seu violão e ent