"Existem três forças capazes de cativar e vencer a consciência para sua própria felicidade: o milagre, o mistério e a autoridade... [essas forças] Tu rejeitaste e deste pessoalmente o exemplo para tal rejeição".
Esta é uma fala de uma parábola que se refere à narrativa da rejeição de Cristo às propostas de se atirar do alto de um templo (para que provasse que era filho de Deus) e descer da cruz (para provar que era o Messias). Sempre me impressiona o que vem a seguir:
"Não desceste porque mais uma vez não quiseste escravizar o homem pelo milagre e ansiavas pela fé livre e não pela miraculosa. Ansiavas pelo amor livre e não pelo enlevo servil do escravo diante do poderio".
E mais:
"Nutriste a esperança de que, seguindo-te,
o homem também estaria com Deus, sem precisar dos milagres. Porém, mal tendo
rejeitado o milagre, o homem imediatamente renegou a Deus, porquanto o homem
procura não tanto Deus quanto os milagres”.
Estes são trechos do capítulo 'O Grande Inquisidor', do livro OS IRMÃOS KARAMÁZOV, escrito pelo russo Fyodor DOSTOIÉVSKI. Nascido há 200 anos em 11 de novembro de 1821, ele também escreveu CRIME E CASTIGO, MEMÓRIAS DO SUBSOLO, O IDIOTA, O DUPLO e NOITES BRANCAS.
Dostoiévski foi um cristão ortodoxo e seus livros traziam profundas reflexões sobre a fé, a vivência espiritual e o poder religioso. No capítulo ‘O Grande Inquisidor’, o autor destila uma visão crítica da institucionalização da igreja, que, para ele, estava cega pelo poder temporal e religioso.
Dostoiévski cria uma parábola em que imagina que Cristo desce à Terra no tempo da Inquisição e anda em meio ao povo, cura cegos, ressuscita uma menina, é reconhecido pelo povo e então é preso por um velho inquisidor. Este lhe pergunta:
"És Tu? Por que vieste nos atrapalhar?
És Ele ou semelhança d'Ele, mas amanhã te julgo e te queimo na fogueira como o
mais perverso dos hereges, e o mesmo povo que hoje te beijou os pés, ao meu
sinal, se precipitará a trazer carvão para tua fogueira, sabias?”
Segundo a interpretação teológica comum, Cristo cumpriu a lei, mas foi culpado de “atrapalhar” a vivência sedimentada da religião e foi crucificado com a anuência da liderança religiosa de sua época por suposta heresia.
A questão não é encontrar heresias, pois isto requer mera comparação de diferença entre atitudes e normas, entre novos ventos de doutrina e princípios estabelecidos. O problema é estarmos tão autocentrados em nosso modelo de tradição ou nosso método de renovação que chamemos de heresia qualquer outro pensamento ou estratégia.
Munidos de autonomia teológica e encantados por novas chaves de interpretação bíblica, os fiéis correm o risco de chamar de estagnação espiritual tudo o que não é espelho. Dominada pela ostentação da verdade teológica e por estratégias empresariais de gestão de pessoas, a liderança eclesiástica corre o risco de perder o senso de autocorreção e conhecimento progressivo.
Se estivermos, leigos e pastores, cegos pela
autoridade punitiva, esterilidade teológica, manutenção do status e
exclusivismo religioso, somos capazes de trazer carvão para a fogueira dos
hereges de novo.
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