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o que a Europa vai fazer com essa tal liberdade?

Os chargistas da Charlie Hebdo publicaram caricaturas da religião islâmica. Sim, assim como publicaram sátiras do cristianismo, de políticos, economistas e celebridades. Sim, a violência da retaliação, além de injustificável, foi absurdamente desproporcional à publicação das charges. 

Tragicamente, na conta do fervor secularista e da intolerância religiosa, o saldo abominável acaba sendo de escárnio antirreligioso e retaliações brutais.

De fato, a liberdade de expressão é um direito fundamental e uma conquista do nosso tempo. Além disso, não há país livre sem uma imprensa livre e sem liberdade de opinar. 

Mas às vezes eu acho que vivemos no reino encantado da liberdade individual (ou ao menos na ilusão dessa liberdade), e ninguém parece interessado em responder à pergunta do filósofo Alexandre Pires: “O que é que eu vou fazer com essa tal liberdade?”

Parece que os deuses tradicionais foram substituídos pelo reino dos homens e estes entronizaram em seu lugar a liberdade de expressão. Mas calma lá com as propostas de regulação da mídia, faz favor. 

Diante do horror desse atentado, para se entender o injustificável, é preciso enxergar que estão em jogo questões culturais e civilizatórias que ainda dividem Europa e Oriente Médio.

Quando essas distintas sociedades colidem, o resultado é dolorosamente simples: assim como os secularistas mais radicais se valem do direito à liberdade de expressão constituído em seus países para satirizar a religião muçulmana, os muçulmanos mais intransigentes se valem do direito à retaliação constituído em seus países para vingar cruelmente a ofensa à sua religião.

Uma coisa é zombar de cristãos já plenamente experimentados na sociedade da liberdade de expressão (e que inclui sua liberdade de culto). Exemplo: quando o cristianismo é satirizado em charges e filmes, uma pequena turba de ofendidos costuma fazer barulho em entrada de cinemas e jornais, inclusive dando mais publicidade ao "ofensor". Mas, em geral, é só o que fazem.

Outra coisa, porém, é satirizar a fé de religiosos que ainda não vivenciaram o exercício da liberdade de expressão e de imprensa, como nas teocracias árabes.


Felizmente, sentado aqui desse lado “mais livre” do Atlântico, por enquanto posso supor que se um jornal islâmico zombar do Parlamento, do Papa ou da rainha da Suécia, é improvável que um grupo de europeus promova um atentado contra os chargistas muçulmanos – no máximo, espera-se que retruquem com lápis e papel.



As duas ilustrações são homenagens de cartunistas após o atentado.


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