Entre os cantores mais copiados e mais criticados dos últimos 10 anos sem dúvida está o nome de Leonardo Gonçalves. O cantor cristão, de fato, provocou uma mudança na música praticada na Igreja Adventista tão intensa quanto as canções de Williams Costa Jr. nos anos 70, o despontar do Grupo Prisma no final dos anos 80, a renovação estilística promovida por Jader Santos no quarteto Arautos do Rei e a recriação da canção coral para a juventude produzida por Lineu Soares.
O título do álbum – Poemas e Canções - carrega duas características da música contemporânea:
1) valorização a letra da canção menos como portadora doutrinária e mais como reveladora de testemunho individual, mas comum à coletividade;
2) consolidação da canção como instrumento mais adequado para evangelização do que o “hino”.
No que diz respeito ao primeiro aspecto, vejo que se para alguns compositores a verdade escriturística é melhor anunciada quando a letra da música extrai poeticamente passagens da Bíblia, num outro tipo de canção religiosa percebo que o relato da experiência individual nem sempre tem o rigor da rima rica, manifestando-se com uma linguagem mais corriqueira.
Quanto à segunda característica, a troca do termo “hino” por “canção” não é mera substituição léxica. Isso reflete uma consciência de toda e qualquer época: a rejeição ao passado não porque o passado é obsoleto, e sim porque a provisoriedade das posições estéticas é algo típico das sociedades humanas. Ou seja, o que hoje vale como estilo definidor de música sacra pode não ter muito significado para uma geração posterior.
Leonardo Gonçalves e Williams Costa Jr. (de novo ele, sem perder o trem da história) buscaram neste CD a união do passado e do presente, da canção moderna e da composição antiga, da instrumentação orquestral e da banda eletrônica, do poema rico e da frase comum, da sã doutrina e do testemunho pessoal.
Destaco algumas faixas como exemplo: o refrão da faixa nº 2 diz “coração, um amigo, um bandido talvez, quem te conhecerá”. Ao mesmo tempo em que se baseia na passagem do livro de Jeremias, a instrumentação é inspirada em atributos pop que não envergonhariam um Ed Motta. Aliás, os vocalises e a pronúncia americanizada de Leonardo, embora apresente influências do soul e do black gospel, parece calcada na dicção de Ed Motta e também de Pedro Mariano (não por coincidência, ambas as vozes inspiradas na black music norte-americana).
Na canção Getsêmani, o cantor exagera deliberadamente na altura vocal e na interpretação, não somente numa demonstração de vigor técnico, mas também para “dizer” melhor a letra. Como se num rompante de indignação com o que os soldados e a turba fazem com Jesus no trajeto do Getsêmani ao Gólgota, o cantor não suportasse a contemplação solitária da cena de horror e gritasse desesperadamente ao homem moderno: “Vem ver os cravos nas mãos/ Seu corpo a sofrer/ naqueles momentos de dor...”.
As faixas O amor de Deus e Pedras são músicas compostas há mais de 30 anos. A primeira, sem a "temível" e polêmica bateria e com um belo arranjo de cordas; na segunda, o violão de César Marques, com suas intervenções ora harmônicas ora percussivas, é tão solista quanto o próprio cantor
A faixa-título Poemas e Canções, bem como a canção “Volta”, têm grande força literária ao sugerir imagens poéticas do relacionamento individual com Deus. Pode-se observar o conceito de Deus tido por um artista da palavra ("pois dEle vem a idéia, o movimento, a cor / a rima, o som...") ou por alguém que traz das reminiscências de um passado um desejo de voltar a um Deus presente na vida desde a infância (“desde quando eu era criança/ ouvi falar de um Deus / que abriu o Mar Vermelho/ lutava pelos Seus").
Inteligentemente, o compositor da canção Volta, Heber Schunemann, soube conduzir a narrativa do poder protetor de Deus sem cair na caracterização banal que tem a visão de um Deus herói, super-herói, Deus de histórias em quadrinhos. Além disso, quantas composições sacras modernas se dão ao luxo de ter um magistral arranjo de Ariney Oliveira para quarteto de cordas, uma formação instrumental das mais difíceis para a arte do contraponto?
Três canções não foram bem recebidas em alguns setores evangélicos: Coração, pela influência pop, Getsêmani, pelo vocalise preponderante, e O amor vai compreender, pelo ritmo da bossa-nova.
Perguntas a considerar: como a igreja pode receber uma bossa-nova, um pop característico, um Getsêmani cantado a plenos pulmões em seus cultos? Se nem todas as canções serviriam bem à liturgia, seriam algumas apenas para audição doméstica ou no trânsito? Teriam apelo a denominações religiosas menos tradicionais, a fim de atingir outros públicos mais acomodados à cultura moderna? Creio que as respostas fogem do lugar-comum e respondem a um contexto contemporâneo de novas situações e comportamentos.
No entanto, Leonardo Gonçalves e alguns cantores de maior ou menor recurso vocal estão se arriscando no terreno extremo do maneirismo. Quando o recurso das frases estendidas ao limite se torna repetitivo e os vocalises e melismas são feitos em qualquer trecho da canção, o recurso técnico tende à saturação, e chama atenção mais para a habilidade vocal do que para a mensagem inspiradora e profunda. Há algumas bandas que assumem clara identificação com a música pop e, involuntariamente, diluem o conteúdo poético e acabam promovendo um tipo de "música sacra de entretenimento". Numa época em que muitos cristãos tendem a reagir como fãs, e não como adoradores, e em que a cultura pop se dita as normas de composição musical e de comportamento do consumidor, isso dá o que refletir.
É fato também que a idade atingiu certas canções e estilos de arranjo, e é preciso lembrar que muitos hinos e canções também encontraram oposição no passado. Enquanto os mais jovens parecem saber receber melhor a novidade, seja uma novidade cultural ou tecnológica, os mais velhos perderam ou parecem esquecer que já tiveram essa capacidade.
A música sacra requer técnica, mas também equilíbrio. Encontrar o equilíbrio é tarefa difícil. O conceito de equilíbrio musical está diretamente vinculado ao arquivo sonoro pessoal, à cultura social e religiosa.
É preciso sempre buscar a palavra de Deus a fim de encontrar segurança nas escolhas musicais. Afinal, para render-Lhe culto ou apresentá-Lo a outros, é necessário conhecê-Lo e relacionar-se com Ele. Assim, podemos descobrir qual o caminho que Lhe agrada e as melodias do Seu apreço. O que pode ser bem surpreendente para qualquer geração.