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a insustentável leveza da gravidade

A dra. Ryan Stone perdeu uma filha e tudo o que ela faz após o trabalho é dirigir com o rádio ligado. Não importa a música nem o assunto. Ela só dirige. Ela se culpa? Ela culpa o destino, a vida, Deus? Não importa. Ela só dirige.

Agora que está suspensa sobre a Terra e um colega de trabalho lhe pergunta “O que você mais gosta aqui no espaço?”, ela só poderia responder: “O silêncio”. Mesmo na gravidade zero do espaço, Ryan carrega o peso da terra.

Isto é Gravidade (Gravity), filme de Alfonso Cuarón, com Sandra Bullock e George Clooney, que tinha tudo para ser mais uma aventura espacial com pitadas de romance entre dois dos espécimes mais bonitos deste planeta.

Mas Gravidade está muito além. Acontece no espaço, mas não tem aliens. Tem naves espaciais, mas não tem clones de Darth Vader. É com a Miss Simpatia, mas ela não tem motivo algum pra sorrir. A mocinha não enfrenta vilões nem extraterrestres, e nem se apaixona por heróis que resolvem tudo aos 90 minutos do 2º tempo.

Gravidade se resume à luta de um ser humano pela sobrevivência. Uma mulher a princípio frágil, perdida e solitária, a dra. Stone crê que tudo é pesado demais para seguir lutando pela vida. É quando um homem que reage de forma leve ao peso da tragédia lhe desperta: “Ryan, você precisa decidir se quer morrer ou sobreviver”.


O filme consegue prender a atenção com drama e suspense. Mas eu perdi mesmo o fôlego com cenas e diálogos que levantavam questões existenciais:

“Eu só dirijo”.  

“Você tem que aprender a abrir mão”: Ryan precisa soltar a corda que não deixa viver nem ela nem o companheiro de voo. É necessário abrir mão de coisas significativas para viver e deixar morrer.

“Todos vão morrer um dia, mas eu vou morrer hoje”: falar de morte virou assunto proibido numa sociedade que não apenas oculta seus mortos, mas também foge da velhice, a última estação antes da morte, esforçando-se para parecer jovem. Não adianta um repórter lhe perguntar: O que você faria se soubesse que morreria hoje? É estupidez perguntar ou responder. Mas cada um saberá se vai morrer tendo perdido a vida.

“Ninguém nunca me ensinou a rezar”: o desejo intrínseco de esperar pela ação de um ser transcendente (um deus, uma ideia de Deus) está ligado à aparente necessidade de falar com ele/Ele na hora das aflições mais profundas ou mais superficiais. É por isso que talvez não existam ateus na hora do pênalti ou no perigo do naufrágio.

“Ou eu tenho uma história incrível quando chegar ou morro queimada em 10 minutos. De qualquer modo, não é culpa de ninguém”: a culpa que gostamos de atribuir ao prefeito, ao pai, à mulher, a Deus é o subterfúgio preferido para acalmar nossas consciências. "Não porás tua culpa nos outros" poderia ser o 11º mandamento.


Não sei se fiquei mais impressionado com o filme pelo fato de meus preconceitos ridículos em relação à Sandra Bullock se quebrarem diante de sua extraordinária atuação; ou se com o fato de saber que todo o cenário (os satélites, as estações espaciais, o belíssimo por do sol visto do espaço) eram criações da computação gráfica; ou se com o fato de, em tempos de franquias de heróis anabolizados, ainda existir um blockbuster com cérebro; ou com a brilhante música eletrônica iludindo a ausência de propagação de som no vácuo; ou com as tocantes questões metafísicas.



Finalizada a dramática aventura no espaço , restará ao indivíduo – como no poema de Drummond – por o pé no chão do seu coração, experimentar, humanizar, descobrir em suas próprias inexploradas entranhas a alegria de conviver. Ryan vai entender que todos têm de carregar o insustentável fardo da gravidade na terra. E que, mais de uma vez na vida, a gente tem que aprender a andar de novo.

Comentários

M. Paixão disse…
Me interessei a ver o filme pela sua narração, obrigada!
Amanda Lissa disse…
Linda análise... Vou assistir....
joêzer disse…
M. Paixão,
e Amanda,

desconfio que vocês gostar.

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