Handel sem O Messias, Bach sem A Paixão Segundo S. Mateus: se os críticos
desses compositores tivessem vencido, a música sacra estaria desprovida de duas de suas maiores realizações.
Na
Inglaterra do século 18, George F. Handel era um alemão a serviço
de Sua Majestade. Sem licença para ousar, mas com raro tino de espetáculo,
Handel fazia sucesso na corte inglesa. Nem por isso conseguiu
estrear em Londres aquela que viria a ser a sua obra mais famosa, o oratório O
Messias. Ele foi, então, para Dublin, onde alcançou tamanho êxito que os empresários
londrinos logo perceberam o potencial comercial da obra.
No entanto, inclusive por ser uma obra de caráter sacro exibida num teatro, e não em uma igreja, O Messias encontrou opositores entre músicos e eclesiásticos da
corte.
Algumas alegações contra o oratório de Handel eram: o
número excessivo de notas, a orquestração considerada mais apropriada para a ópera e não para uma peça sacra, a linha vocal dos solos que lembrava o estilo operístico, enfim, o trato
espetaculoso da forma do oratório. Os críticos de Handel temeram a aproximação do
oratório com a ópera e a banalização do texto
bíblico.
Será que eu e você, que hoje ouvimos O Messias com enlevo espiritual, estaríamos entre os críticos de Handel trezentos anos atrás?
Será que eu e você, que hoje ouvimos O Messias com enlevo espiritual, estaríamos entre os críticos de Handel trezentos anos atrás?
Também na primeira metade do século 18, Johann Sebastian Bach trabalhava estimulado pelas palavras de Martinho Lutero de que a música deveria ser um "sermão em sons". Não por acaso, no Everest dos oratórios, A Paixão Segundo S. Mateus, Bach incorporava melodias inspiradas no poder dramático das árias operísticas, o que cooperava para ressaltar a força dos textos bíblicos de suas cantatas sacras.
No entanto, essa façanha teológica e estética de Bach parece não ter impressionado os ouvintes de sua época, visto que o único registro crítico veio de uma idosa na congregação: "Deus nos ajude! Isso é uma ópera-cômica!"
Quando trabalhou para a igreja em Arnstadt, os dirigentes eclesiásticos o censuraram por fazer "estranhas variações nos corais, misturando muitos tons diferentes de tal modo que a congregação ficava confusa por causa disso". Note que o caso do número excessivo de notas não era um "problema" só para Handel.
Os críticos de Handel e Bach demonstravam um ranço
ético-musical que perdura até hoje: o de fazer da própria cultura
musical-religiosa a medida de todas as músicas. Ao acreditarem que seus próprios
valores musicais devem ser os únicos parâmetros de composição musical para outro
indivíduo, muitos legitimam as crenças artísticas pessoais em detrimento do
arcabouço cultural e expressivo do outro.
Posso até imaginar que, se Deus buscasse somente obras sacras de altíssima técnica musical, provavelmente Ele teria ficado muito bem acostumado às obras de Handel e Bach e poderia estar muito entediado com a qualidade da música atualmente consagrada a Ele. Os músicos contemporâneos devem agradecer todo dia pelo ouvido divino mais interessado na obediência e sinceridade do coração do que na "boa música" ou na aparência de louvor sincero.
Por outro lado, acompanhar as tendências da música de seu próprio
século não é garantia de que se está fazendo o que é correto ou justo, ou mesmo
necessário. Contudo, se a mudança na música sacra se der menos pela novidade sem critérios ou pela acomodação ao mercado fonográfico e mais por uma mente consagrada e um genuíno interesse em nutrir a igreja e em comunicar o evangelho por meio de novas expressões artísticas, nossa geração
terá compreendido o sério papel que tem a desempenhar no
ministério da música.
Citações extraídas de James R. Gaines, Uma noite no palácio da razão, 2007.
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