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interestelar ou a salvação vem de nós mesmos

Um dos maiores problemas do filme Interestelar é ser tedioso. Não consegui entrar no clima do filme. Embora tenha algumas cenas muito boas, achei este filme apenas pretensioso e vazio. 

O segundo grande problema é o grau de solenidade que o diretor Christopher Nolan tentou conferir ao filme. Não há problema em usar o som de church organ (órgão de igreja) para emoldurar as cenas com uma aura de reverência ou sagrado. O cineasta Stanley Kubrick fez isso em 2001 - Uma odisseia no espaço, com resultados bem opostos (embora alguns possam considerar 2001 enfadonho e pretensioso). 

Por sua vez, Nolan utiliza essa sonoridade associada à solenidade em cenas onde o tom solene não cabe, talvez porque mal-dirigidas, como na cena de um personagem de olhar perdido pro horizonte. 

As citações a 2001 são muitas, mas não soam como homenagem e sim como um pastiche, não só nos trechos com som de órgão (Kubrick usou o poema sinfônico “Assim Falou Zaratustra”, do compositor Richard Strauss), como também na cena do protagonista à deriva no espaço (o close do capacete do astronauta de Interestelar faz lembrar o bebê no útero na cena final de 2001, mas aquele não exala o senso de enigma existencial deste).

Há mais souvenires de 2001: as gravações interestelares de pai e filha (em 2001, pai e filha conversam em tempo real); as espaçonaves despencando por luzes e efeitos que vão levar os protagonistas a "outra dimensão"; o hospital das cenas finais. E remete ainda ao filme Contato: a filha cientista que busca resolver questões entre sentimento e razão e que não lida bem com a perda da figura paterna comparece em Interestelar na personagem Murph, filha do piloto Cooper.

Os robôs TARS e CASE de Interestelar são uma referência tanto ao monolito negro como ao computador HAL 9000, de 2001. Aliás, os robôs são uma fusão dessas referências. 

o robô-monolito TARS

o monolito e os astronautas de 2001


No entanto, enquanto HAL 9000 fala com gravidade e arrogância, à imagem e semelhança dos homens que o projetaram, TARS tem uma voz tranquilizadora que não condiz com o trágico e o solene de algumas cenas. Nolan disse em entrevista que é um risco querer chegar perto de algo grandioso como 2001. Mas algumas cenas de Interestelar mostram que ele tentou no mínimo dialogar com o filme de Kubrick e Arthur Clarke, embora o resultado tenha estacionado a anos-luz de distância.

A recorrência a 2001 transparece até no andamento lento de Interestelar. Contudo, enquanto em 2001 a lentidão serve à contemplação quase religiosa das cenas finais, no filme de Nolan a lentidão deixa o filme à deriva, indeciso entre a reflexão contemplativa e a ação barulhenta.

Recorrer a 2001 é quase inevitável quando se parte de uma história em que os pilotos viajam para fora da Terra com o intuito de encontrar uma solução para os males da terra. Enquanto no final de 2001, o piloto Dave Bowman renasce e transcende a espécie humana, o que remete a princípios religiosos de recriação e transcendência, em Interestelar não há intervenção do sobrenatural ou do divino. A salvação do homem está nas mãos do próprio homem.

Embora, a princípio, os personagens de Interestelar mencionem algo como manifestações sobrenaturais (fala-se que "eles" - seres celestiais? - estão por trás da ajuda ao homem), ao final se vê que foi o próprio homem o responsável pela sua salvação. Em nome da razão ou da fraternidade, a salvação vem de nós mesmos.

2001 deixa espaço para o mistério do sentido da existência, pois nada é muito explicado no filme. O espectador acredita ou não. Já em Interestelar, as seguidas explicações cientificistas dos personagens podem ser vistas como a justificativa da racionalização das ações humanas, e somente humanas. O espectador acredita se for plausível ou não. 2001 toca os limites da transcendência porque é espiritualmente plausível. Em Interestelar, vigora a ideia de que algo só é plausível porque cientificamente explicável.

*****
Escrevi sobre outros filmes em que o espaço sideral é o cenário dos debates existenciais:

Contato

Prometheus

Comentários

caro Joêzer,
há muito tempo não passava por aqui. que bom que continua firme e forte.
em outro momento quero tomar o tempo para debater, mas não posso deixar passar que a minha impressão é exatamente contrária à sua: achei Interstellar fenomenal, apesar de não concordar com ideologia por detrás. uma fusão de Feuerbach e seus conversos Nietzsche e Freud, além de bastante Kant, Platão e provavelmente tantos outros que não conheço ou não percebi, foi simplesemente espetacular. um não-romance sutil e profundo, uma trilha assustadoramente gigante, imagens grandiosas e pretensiosas, mas que, em minha opinião formam uma excelente moldura para este roteiro tão bem elaborado... bem, Nolan, para mim, é o melhor no momento e este filme é um dos poucos que recebeu 10 na minha lista de filmes. tive o privilégio de assistir em um IMAX 70mm e não houve um minuto sequer de tédio. é a melhor sala que eu conheço, onde o som geralmente é excepcional, mas a mesma não deu conta da trilha que chegou a ser esmagadora em vários momentos.
portanto, como você pode ver, estou do outro lado do espectro em termos de opinião.
vamos nos falando.
grande abraço
joêzer disse…
mister andré, prazer em vê-lo por aqui.
eu fui assistir com as melhores expectativas porque gosto muito de ficção científica. aponto 4 problemas que não me deixaram engolir o filme:

4 - eu achei a trilha sonora ótima, é o Hans Zimmer. o problema está em alguns momentos em que não está acontecendo nada solene ou majestático e vem o órgão a la Assim Falou Zaratustra. Além de cópia forçada (e não citação, como fazia Brian de Palma com cenas de Hitchcock), a música tenta induzir a um sentimento ou sensação que não comparece na tela.

3 - Nolan indica que vai seguir um caminho e termina noutro: deixa claro que será uma jornada científica, mas termina num dramalhão desnecessário. Anne Hathaway tentando provar a ciência do "poder do amor" num momento decisivo do filme é risível.

2 - Sutileza não é o forte de Nolan. Ele tasca as explicações na cabeça da gente. Para que aquela cena do astronauta fazendo um furo numa folha de papel para explicar para outro astronauta o "buraco de minhoca"? Já tinha sido falado no filme, mas aí o Nolan parece perguntar ao espectador: Entendeu ou quer que desenhe?

1 - O grande problema de Interestelar não é a pseudociência ou o dramalhão, nem a lentidão contemplativa de algumas cenas. O problema foi fazer um filme inspirado em reflexões filosóficas e científicas mas que tivesse cenas que atraísse o espectador médio. O resultado é um crossover que não ficou nem uma coisa nem outra - nem ficou como os novos Star Trek ou Gravidade (filmes assumidamente populares com subtexto existencial) nem como 2001 ou Contato.
em todo o caso, é um filme que recomendo assistir, nem que seja para se decepcionar, como foi meu caso.

abraços, man!
Grande Joêzer,
Vamos ponto por ponto:
4 - não fiquei com esta impressão, mas irei assistir outras vez para averiguar. o problema é que este simplesmente não é um filme que foi feito para se assistir em casa ou em salas inferiores. vai ser sofrimento sentir a ausência do espetáculo sonoro e visual em sua plenitude.
3 - não tive a impressão que o caminho era científico, mas sim, desde o início, um discurso filosófico de Feuerbach, onde Teologia é substituído de Antropologia e onde Deus é a projeção de características humanas. Não há nada novo neste discurso, mas achei que foi feito de maneira majestral. Pessoalmente não conheço 2001 à fundo, mas o discurso principal lá me parece ser outro. Nietzsche, Marx, Engels e Wagner eram conversos desta nova religião ateista. O filme, como a filosofia, peca em acreditar na natureza humana essencialmente boa, como a história da nossa raça claramente demonstrou. Portanto, na minha visão não há mudança de rumo, pois, no fundo, o discurso era em torno do discurso ateu e suas ramificações.
2 e 1 - concordo em parte. acredito que ele tenha colocado algumas coisas desta forma, o que desfigura um pouco, mas o discurso subjacente, de Antropologia substituindo a Teologia, continua distante da cabeça da grande maioria dos espectadores. Contato é fantástico, mas o discurso é bem mais aberto e, em minha opinião, menos distante do que cremos. Interstellar é um pacote fechado, um manifesto ateu, uma visão modernista. Inclusive, Nolan é um dos poucos que ousa ver o mundo como algo descartável, um anti-ecólogo, algo ousado e politicamente incorreto hoje em dia. Ele é o oposto do Cameron, apostando em 70mm, trilha de orgão, e uma mensagem impopular. respeito, apesar de não concordar com a tese fundamental.
grande abraço, meu caro
joêzer disse…
concordo que o filme serve uma ateologia, ou um antropocentrismo (antropodiceia?) radical. Por isso concluí que em Interestelar "a salvação vem por nós mesmos". Ok, posso assistir e dialogar com a ideia. Talvez por ficar entediado (será que cochilei?) eu não tenha percebido esse discurso desde o começo, pois me pareceu somente uma viagem interplanetária e depois entrou o poder do amor como resolução e depois o poder da tecnologia humana como solução.
Nolan merece crédito por levantar questões fundamentais da existência em seu seu cinema - como acho que ele fez com louvor em Dark Knight.
um ótimo 2015 a você e à família!
Anônimo disse…
A palavra "pseudociência" presente em muitas críticas me chamou a atenção. Achei o filme uma porcaria, mas não porque é "pseudocientífico". Aliás nem acho que uma boa ficção científica deva ser científica, caso contrário deixaria de ser ficção (embora fique difícil, às vezes, reconhecer o limite entre uma teoria e uma boa ficção, o que não é o caso deste filme; não é uma teoria, muito menos uma boa ficção). O problema é que esse cara, ao se utilizar de um certo repertório linguístico, emprega mal o vocabulário. Não estou falando de inconsistências, estou falando de prolixismo. O uso de certos conceitos da física me deu somente a sensação de que eu não entendo porcaria nenhuma do assunto e que por isso mesmo deveria levar a sério o que aquele roteiro importante estaria tentando me dizer. Um filme não deve ser complicado para ser bom, tampouco deve ser simples. Ele deve ser o que deve ser ( e neste caso ele é o que não deve). Gostaria de citar um bom exemplo de filme cuja temática aborda a questão das ciências formais sem ser pedante: " pi" de Darren Aronofsky. Um filme que fala o tempo inteiro sobre matemática sem praticamente botar um cálculo na boca dos protagonistas. Resta, então, ficarmos de boa com o fato de que o destino de toda humanidade tenha ficado num pequeno quarto norte americano esperando para ser interpretado por uma garota norte americana. Ah, bom... Só fico aqui me perguntando, se no caso de um cataclisma, eu farei parte dessa humanidade a ser salva pelos gringos.
joêzer disse…
caro anônimo, ótimo comentário! vou procurar ver o filme "pi". grato pela leitura. abs.

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