Dia do músico. Podia até ser feriado santo dado o caráter de santo remédio atribuído à música.
O pianista geralmente é visto como um agraciado, um privilegiado que lê hieróglifos e fala pelos dedos. Ou como um chato que martela o piano e o ouvido alheio, que é obrigado ao exercício de escalas musicais enquanto os outros são obrigados ao exercício da tolerância. Aos 13 anos, eu mesmo torturava as ajudantes domésticas tascando-lhes na escuta as escalas de Hanon às duas da tarde. Quando o almoço não tinha sobremesa, aí o castigo infligido era meia hora do terrível "Microkosmos" do Bartók.
À noite, após o jantar e a sagrada reunião familiar, meu pai me pedia: "Filhão, toque aquela música". Era a deixa para eu dedilhar o Pour Elise de Beethoven. Quando recebíamos visitas ilustres, pelo menos ilustres para os meus pais, eu ouvia o indefectível pedido: "Toque aquela música!".
Mas um dia minha ridícula rebeldia pré-adolescente viria à tona. Visitantes na sala, satisfeitos, inclusive com sobremesa, agora era a hora do Beethoven Apaixonado começar a tocar.
Mas que nada. Saí, exibido, dedilhando outra música, acho que era alguma intitulada Gallop du Diable. A música exigia muita técnica, velocidade e força, ou seja, eu parecia um mozartinho embevecido. Após o finale, olhei pra trás esperando aplausos mas só ouvi alguns muxoxos tipo "bom, hein?", "ah, legal". Aí meu pai não resiste e sussurra:"Não, filhão! Toque aquela!". Ok, ao vencedor, Pour Elise. Agora com palmas e mais palmas.
Um músico de personalidade intrigante está no filme O Pianista (2002), de Roman Polanski. O pianista Szpilmann, interpretado por Adrian Brody, é o retrato de um homem que só ressalta sua humanidade através da sua arte, da sua música.
Szpilmann teme a guerra, é um filho teu que foge à luta. Ele é um artista que não entende porque os homens preferem atirar uns nos outros em vez de fruir um pouco de Chopin em paz. Chopin, o polonês delicado e irascível, mais amigo das artes que dos homens, cuja música é ponto central de um filme que parece falar de guerra e intolerância, quando na verdade fala de atitudes humanas diante da tragédia.
Comova-me ou devoro-te! A cena do pianista judeu-polonês, famélico, em farrapos, recebendo a Esfinge em forma de oficial nazista em meio a ruínas é significativa. O alemão acabou de tocar o Beethoven da Sonata ao Luar e, ao descobrir a triste figura de Szpilmann, exige dele: se você é mesmo pianista, toque! O fugitivo poderia tocar a Apassionata ou até mesmo, de forma colaboracionista, tocar um arranjo para piano do 2º movimento do Quarteto op. 76, de Haydn, também conhecido como o hino nacional alemão.
Porém, Szpilman, que nunca foi nem delacionista nem revolucionário, que só quis agradar a arte, que mal amava a própria vida, a ponto de insistir em tocar piano enquanto o restaurante em que trabalha é bombardeado; esse mesmo Szpilmann dedilha o piano calorosamente, como se nunca tivesse passado pelas privações que vivia (ou exatamente porque passava por privações), e toca a Balada n. 1 em Sol menor, de Chopin, claro.
Nos recitais de alunos de piano, costumava-se brincar dizendo "Não atirem no pianista. Ele está fazendo o melhor que pode". O recital de Szpilmann só tem um espectador, que vai julgar se sua performance merece a vida ou a morte. Ele se salvará se for um bom pianista? Ele não viverá por ser um fugitivo do horror, mas por ser um sobrevivente da música? Os dois homens parecem unidos pela música. Então, o que a arte uniu, que não separe a guerra do homem.
O ser humano belicoso se repete nas guerras e não aprende com a arte. Mas, por cima das atrocidades das guerras atuais, está a música de Chopin. Um Prelúdio em meio aos escombros do Iraque, por favor!
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