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os Salmos: uma teologia para a música


O maior livro da Bíblia é um hinário com 150 poemas e canções: o livro dos Salmos. Não restou a melodia original de um salmo sequer, mas seus versos ainda inspiram compositores de hoje, como o pastor e músico Daniel Lüdtke, autor de 11 canções baseadas em 11 salmos.

Quando são utilizados numa música, os versos bíblicos habitualmente sofrem uma alteração na sua métrica. No DVD Salmos, Daniel Lüdtke se viu obrigado a editar cada salmo, tendo que reduzir trechos, modificar palavras e simplificar a poética bíblica. Mesmo assim, ele manteve o sentido espiritual dos salmos e, ao mesmo tempo, sugere uma maneira teológica e musical de ensinar e motivar a igreja à adoração.

João Calvino dizia que “não há outro livro em que somos mais perfeitamente instruídos na correta maneira de louvar a Deus” (O Livro dos Salmos, vol. 1, p. 33). Os Salmos, então, têm algo a ensinar aos compositores de música cristã em nossos dias? Entendo que há pelo menos quatro pontos que podem orientar os músicos contemporâneos:

Criatividade poética: a sugestão de imagens nos Salmos é bastante rica: “O meu corpo Te almeja como terra árida” – Sl 27; “Tirou-me de um poço de perdição, salvou-me da lama e meus pés firmou na rocha; Ele me pôs nos lábios nova canção” – Sl. 40; “E se tomar as asas da alva e habitar no extremo do mar, até ali a Tua mão me guiará, Tua destra me susterá” – Sl. 139 (na clássica adaptação do grupo Prisma). Em tempos de chavões desgastados e refrões repetitivos, o compositor cristão encontra originalidade, beleza poética e riqueza vocabular nos antigos salmos.

Variação temática: Os salmos convidam ao louvor alegre (Sl. 100) e à exaltação reverente do nome de Deus (Sl 46:10). Nos Salmos, Cristo é apresentado como Pastor e Cordeiro, como vítima e também como Redentor. Deus é apontado como Criador e Mantenedor do mundo (Sl. 24) e também como Aquele que guia os humildes e ensina os mansos (Sl. 25:9). Há salmos de súplica e de esperança (Sl. 91), de confissão de pecado (Sl. 32) e de declaração de amor à Lei (Sl. 119).

O hinário protestante tradicional apresenta grande amplitude temática, incluindo hinos de louvor e adoração a Deus (sem deixar de mencionar a Trindade) e hinos sobre o perdão divino, a cruz, a ressurreição, o chamado missionário, o caráter de Deus, a conversão a Cristo, a vitória pela fé, o Novo Céu, a segunda vinda de Cristo etc. Em contraste, atualmente vigora um repertório de louvor & adoração que tem reduzido os temas a uma música alegre sobre a soberania do Pai, uma canção apaixonada pelo Filho e um pedido choroso pelo derramamento do Espírito.

Por isso, a diversidade temática, como nos salmos, merece ser buscada pelo letrista cristão.

A dupla dimensão teológica: os salmos revelam uma dimensão teológica objetiva, que proclama a Criação, a Lei de Deus, o perdão e a salvação, descrevendo o modo divino de agir; e uma dimensão teológica subjetiva, que representa os sentimentos humanos de alegria e reverência, de angústia e esperança.

Esse duplo aspecto teológico sempre esteve presente na prática musical cristã. Houve períodos em que um desses aspectos foi mais ressaltado que o outro. Por outro lado, o modelo de performance musical apresentado no DVD Salmos também apresenta uma dupla perspectiva: enquanto as canções são uma atualização de estilo de melodia e arranjo, as letras celebram antigas e eternas verdades bíblicas. Há modernização do modelo congregacional de adoração coletiva e há alegria no canto e serenidade e reverência nas falas.

A renovação musical: os Salmos foram escritos num período de 900 anos. Novos salmos iam sendo acrescentados com o tempo, cada capítulo da história do povo de Israel gerava a produção de um novo repertório. Isso nos diz que a inovação musical anda ao lado das canções mais antigas. A inevitável renovação das formas musicais é companheira da tradição daquelas músicas que nos conectam às raízes da igreja.

É possível extrair do livro dos Salmos um aprendizado sobre a tensão entre o tradicional e o moderno. Em vez de justificar atritos de gerações e gostos, essa tensão pode funcionar como ponto de equilíbrio entre sentimento humano e atuação divina, entre o simples e o sofisticado, entre tradição e atualização.  Não por acaso, o apóstolo Paulo escreveu que os membros de uma igreja cheia do Espírito devem buscar o “falando entre vós com salmos”. Tal igreja avançará “cantando e salmodiando ao Senhor” (Ef. 5:19). 


Este texto foi publicado originalmente na revista ConexãoJA (jan-mar. 2012). Como autor, modifiquei ligeiramente para postagem neste blog.

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