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CD Renascido: a solidez da doutrina na voz da fluidez musical - parte 2

*pequeno estudo sobre o CD Renascido, de Daniel Salles (parte 1 aqui).

No CD Renascido, ainda há outros vestígios de suavidade no tratamento de temas mais sérios. Na música “Cardiomegalia”, por exemplo:

no meio da noite veio uma vontade de acordar
 volume no peito que crescia feito bolo de maracujá,
sintomas de uma alegria que não cabia em mim [...]

Por que usar nessa canção um estilo rítmico mais animogênico/movimentado? Segundo a letra dessa canção,

“Na bíblia eu li que um homem coxo foi curado e se pôs a dançar
E quase explodindo de alegria sua cura teve de contar
Um tipo de cardiomegalia santa inflando o coração”

No cristianismo, não somente a cura física, mas também o aceitar das boas novas da salvação estimula a alegria que não se pode conter:

Não fica parado nem calado quem foi salvo da condenação
[...]”
“Quem recebeu a graça só consegue amar
Pois sente o calor da chama viva a queimar
O coração que cresce agora quer compartilhar
Pois sente que é nascido em Deus pra doar amor”


Na música “Pronto pra Amar”, o cantor diz que “só estarei pronto para amar alguém” quando deixar de olhar para si e mirar o exemplo de Cristo:

“Apenas quando eu esquecer de mim”, “me diminuir”, quando “eu olhar pra cruz”, “imitar Jesus”. Só então será possível “viver para espalhar a benção da graça”.

Estas duas últimas canções têm estilo e performance vocal que tendem ao black gospel norte-americano. Mas na verdade, ambas as canções têm um pé na rica herança do gospel negro estrangeiro e outro pé na rica musicalidade afro-brasileira.

Quando ouvem a expressão “afro-brasileira”, muitos cristãos já visualizam imagens de rituais de possessão e sons de tambores. No artigo "Música, religião e cor", a antropóloga Márcia Pinheiro percebeu que essa noção é muito presente no meio evangélico e que, por essa razão, os compositores evangélicos tendem a utilizar as expressões da música popular afro-norte-americana, como o soul e o rap.

Mas ao inserir, de forma bastante atenuada, as expressões musicais afro-brasileiras, como em “Sábado”, e afro-norte-americanas, como em “Cardiomegalia”, Daniel Salles mostra que é possível manifestar sem recalques e com tato a identidade musical negra, vista por alguns setores cristãos ainda como algo musicalmente inferior e teologicamente incorreto.

Entretanto, essa aparente subversão da forma tradicional de cantar os temas cristãos está somente nesses exemplos musicais citados acima. No restante do repertório, volta-se à musicalidade sem sobressaltos (para alguns ouvintes, claro).

Na canção “O efeito da graça”, a letra sofisticada de Mário Jorge Lima descreve o contraste entre a compreensão correta da graça divina e os pensamentos obtusos humanos sobre a graça:

“A graça e a sensação de culpa, a graça e a estúpida arrogância, a graça e a falta de transformação: são coisas mutuamente exclusivas”. A letra acrescenta: “A graça e o medo da condenação, a graça e o espaço dado ao erro, a graça e a alma sem submissão são coisas mutuamente exclusivas”.

A solução apresentada é:

“Mas quando a graça invade a nossa vida
Expulsa as trevas [...]
Traz liberdade e paz [...]”

O CD Renascido tem um forte componente autobiográfico. Poucos meses antes de produzir o CD, Daniel havia passado pelo tênue fio que separa a vida da morte. Após sua recuperação de uma doença gravíssima, cuja repercussão mobilizou seus irmãos de fé Brasil afora, ele só poderia incluir no repertório do CD uma experiência tão aguda. Daí várias canções repassarem o sentimento de dor, perda, cura, gratidão e recomeço.

Esse olhar em retrospecto para aqueles momentos não resultou em simples relato de cura física e agradecimento. Daniel Salles reconta sua experiência individual e a associa à vivência espiritual coletiva de sua igreja e dos cristãos de forma geral.

“Quem saiu de um leito frio, em quarto triste, de sons distantes,
saberá amar a vida tão resumida, abençoada e tão sofrida
Lágrimas a romper em dia de alegria, quando vier o sol”
[Renascido]

“Quanto mais escura for a noite
Mais e mais eu ponho a fé em Cristo
Quanto mais a dor aumentar
Mais e mais eu creio na promessa, o meu Senhor virá
Vou sorrir quando o sol chegar”
[Quando o sol chegar]

Para quem enumera relatos de dificuldade de sobrevivência e sociabilidade (em bom português, fome e preconceito racial), o componente autobiográfico mais dolorido comparece nas canções “Só eu sei” e “Se acostume comigo”. Mais uma vez, o autorretrato repassa a dor pelo filtro da superação alegre.

Por fim, três canções que, ouvidas consecutivamente, são um painel de três tempos de uma relação amorosa.

Na primeira, “Você me surpreendeu”, o começo de tudo, quando o amor desperta inesperadamente ou bate à porta quando se desdenha sua existência:

“Você reacendeu uma chama dormida,
outrora apagada por outros planos da vida”
ou
“Você me surpreendeu quando ao telefone
Percebeu que seu sonho era exatamente o meu”

Das coincidências e sonhos comuns dos estágios iniciais de uma relação, chega-se ao tempo em que se olha retrospectivamente. A canção seguinte se chama “Primeiro Amor” (ouça aqui), mas poderia intitular-se “o meio do amor”. Alguns trechos de sua letra podem ser interpretados assim:

“Não sei como caminhar sem ouvir o som da sua voz”: isso é a relação na perspectiva do agora.

“Eu não cruzei muitos caminhos pra te encontrar,
Eu não vivi outras história de amor assim”: isso é a retrospectiva.

“Você estava no começo e também vai estar no fim”: isso é a expectativa.

Por último, na canção “Vows Renewal” (renovação dos votos) estão as promessas de manutenção do amor nos momentos futuros. Não está aqui o fim, mas o sem-fim do amor. O amor que se renova, que se pereniza, o entendimento de que o amor não é só uma comédia romântica.

No dueto, Daniel e Rosane, esposa do compositor, cantam o amor na maturidade, na velhice. A canção diz que nas dificuldades da velhice “eu estarei lá”. E em outros versos, reaparece o estilo de Daniel de dizer as coisas mais sérias com tons de leveza:

“Quando o baby à noite acordar” e “quando a louça se acumular, eu estarei lá”.

Ao escutar o CD com outros ouvidos, menos dado a purismos teimosos, tem-se um trabalho musical que não fala apenas dos princípios da fé, da esperança, da salvação, da lei e da graça. Renascido fala das miudezas do cotidiano, das relações amorosas, da alegria de viver ou de reviver.


É assim que o mandamento do sábado é visto na perspectiva da graça, e por isso não é um peso para o compositor. É assim que a relação amorosa (o cotidiano) é vislumbrada na perspectiva do plano de Deus (o transcendente). É assim que quem esteve às portas da morte compartilha musicalmente a graça do renascimento.

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