Apesar dos avisos da crítica, tive que assistir a Dreamgirls por uma razão acadêmica. Após o “the end” do filme, fiquei pensando porque raios me recomendaram vê-lo. Talvez eu tenha me confundido e quem me receitou esse filme era um sádico querendo que eu experimentasse uma sessão (da tarde) de tortura, ou um dos doutores da alegria tratando meus humores com essa comédia involuntária, ou era apenas uma prova de paciência que me ensinasse a suportar biblicamente a leva de canções ruins do filme.
Torturado pela chatice do enredo, rindo dos sérios intérpretes musicais e suportando a monotonia das canções. Explico.
Quando o filme começa, somos pegos pela fotografia de cores fortes e pelo enquadramento do show mostrado. Porém, a seguir, percebemos que quase todas as cenas cantadas têm a mesma obsessão por cores berrantes (principalmente com aquela luz azul sobre o intérprete). A história, bem, que história? Os eventos se sucedem com elipses mal-feitas que tentam explicar as decisões dos personagens, os quais têm a profundidade psicológica de um prato de restaurante self-service.
Mas o pior não é a história contada como um enredo de escola de samba. É certo que o filme parece um carro alegórico desajeitado num daqueles desfiles que só vejo nas reportagens pós-carnaval dos telejornais. Não é o samba do crioulo doido, na expressão politicamente incorreta de Stanislaw Ponte Preta. É a black music do crioulo doido. E aqui está a razão pela qual me recomendaram o filme e também a razão pela qual eu não posso recomendá-lo: as canções.
Em geral, o musical americano sempre foi uma adaptação cinematográfica dos musicais de sucesso da Broadway. Os compositores eram do quilate de Jerome Kern, Richard Rodgers, Cole Porter e até Leonard Berstein (Amor Sublime Amor – 1961). Muitas das melodias sabiam acompanhar as emoções do filme e, mesmo quando o personagem apaixonado de repente sapateava na chuva, ou uma governanta ensinava a escala musical aos sete filhos de um ricaço, percebia-se a exuberância melódica, a harmonização inteligente. As letras, que perdiam a qualidade nas legendas em português, eram criativas, com uso de aliterações, rimas surpreendentes e adequação à melodia. Loerenz Hart, Oscar Hammerstein II, Stephen Sondheim, eram alguns dos letristas geniais. Pode-se não gostar da ingenuidade de A Noviça Rebelde (1965), mas as músicas são inegavelmente belas (verifique a poesia da canção “Sound of Music” ou a delicadeza afetiva de “Something Good”).
O musical esteve adormecido durante os anos 80 e 90 para ressurgir no século XXI. Porém, Dreamgirls não tem nem as doloridas canções de Björk em Dançando no Escuro (2000) nem a inventividade de Moulin Rouge (2001). Também não possui a qualidade musical dos anos 50 (e olha que tem por base uma das mais fecundas criações musicais, o soul e o som da Motown) e as letras são de um primarismo constrangedor. Animações da Disney, como A Bela e a Fera e Aladdin, têm letras muito melhores.
As interpretações seguem o modelo filosófico American Idol: grito, logo existo. Isto é, quanto mais berros melismáticos, mais a audiência sobe. Jennifer Hudson, uma participante desse reality show que é uma encarniçada disputa pelo gogó de ouro, ganhou o Oscar de interpretação (?!), o que já nos revela o “nível” de seu trabalho. Assim, vence o padrão Beyoncé Knowles: aquele de muita potência vocal e nenhuma qualidade musical. Se bem que isso vem desde a escola Mariah Carey, aquela escola onde a miniatura artística é simetricamente proporcional ao tamanho das peças do vestuário.
Beyoncé, que, umpf, atua no filme, tem sua oportunidade de estar nesse veículo que também pode ser o eternizador do tosco que é o cinema e não desperdiçou a sua vez de entrar no hall do American Brega (voltarei ao tema noutro dia). Fazendo o papel da cantora de voz apagada que é elevada a condição de musa pop por causa do rostinho e do corpinho, a ironia é que esse é o papel que a própria Beyoncé desempenha na realidade como representante de uma música chata e pasteurizada, exclusiva para o estímulo de hormônios e não de neurônios.
São tantas as canções e poucas as emoções que não consigo me lembrar de uma sequer pra servir de exemplo didático. Só lembro que são uma tentativa de reviver a black music da Motown, aquela gravadora que ficou famosa nos anos 60 por revelar o talento de Diana Ross, Marvin Gaye, Stevie Wonder e os Jackson 5. Não posso dizer que a tentativa foi bem-sucedida. Os personagens, talvez por medo da indústria americana do processo judicial, foram elaborados, ops, rascunhados levemente nas figuras musicais reais da gravadora. Mas, assim como as canções, mal chegam a ser clones de uma época.
Dessa forma, pelo extremo mau gosto e por sua incapacidade de oferecer um mínimo de força visual ou narrativa, o filme perde a chance de retratar um período histórico e também de rememorar com qualidade artística o estilo de sucesso da Motown. Em suma, é um musical que perdeu a chance de ficar calado.
Torturado pela chatice do enredo, rindo dos sérios intérpretes musicais e suportando a monotonia das canções. Explico.
Quando o filme começa, somos pegos pela fotografia de cores fortes e pelo enquadramento do show mostrado. Porém, a seguir, percebemos que quase todas as cenas cantadas têm a mesma obsessão por cores berrantes (principalmente com aquela luz azul sobre o intérprete). A história, bem, que história? Os eventos se sucedem com elipses mal-feitas que tentam explicar as decisões dos personagens, os quais têm a profundidade psicológica de um prato de restaurante self-service.
Mas o pior não é a história contada como um enredo de escola de samba. É certo que o filme parece um carro alegórico desajeitado num daqueles desfiles que só vejo nas reportagens pós-carnaval dos telejornais. Não é o samba do crioulo doido, na expressão politicamente incorreta de Stanislaw Ponte Preta. É a black music do crioulo doido. E aqui está a razão pela qual me recomendaram o filme e também a razão pela qual eu não posso recomendá-lo: as canções.
Em geral, o musical americano sempre foi uma adaptação cinematográfica dos musicais de sucesso da Broadway. Os compositores eram do quilate de Jerome Kern, Richard Rodgers, Cole Porter e até Leonard Berstein (Amor Sublime Amor – 1961). Muitas das melodias sabiam acompanhar as emoções do filme e, mesmo quando o personagem apaixonado de repente sapateava na chuva, ou uma governanta ensinava a escala musical aos sete filhos de um ricaço, percebia-se a exuberância melódica, a harmonização inteligente. As letras, que perdiam a qualidade nas legendas em português, eram criativas, com uso de aliterações, rimas surpreendentes e adequação à melodia. Loerenz Hart, Oscar Hammerstein II, Stephen Sondheim, eram alguns dos letristas geniais. Pode-se não gostar da ingenuidade de A Noviça Rebelde (1965), mas as músicas são inegavelmente belas (verifique a poesia da canção “Sound of Music” ou a delicadeza afetiva de “Something Good”).
O musical esteve adormecido durante os anos 80 e 90 para ressurgir no século XXI. Porém, Dreamgirls não tem nem as doloridas canções de Björk em Dançando no Escuro (2000) nem a inventividade de Moulin Rouge (2001). Também não possui a qualidade musical dos anos 50 (e olha que tem por base uma das mais fecundas criações musicais, o soul e o som da Motown) e as letras são de um primarismo constrangedor. Animações da Disney, como A Bela e a Fera e Aladdin, têm letras muito melhores.
As interpretações seguem o modelo filosófico American Idol: grito, logo existo. Isto é, quanto mais berros melismáticos, mais a audiência sobe. Jennifer Hudson, uma participante desse reality show que é uma encarniçada disputa pelo gogó de ouro, ganhou o Oscar de interpretação (?!), o que já nos revela o “nível” de seu trabalho. Assim, vence o padrão Beyoncé Knowles: aquele de muita potência vocal e nenhuma qualidade musical. Se bem que isso vem desde a escola Mariah Carey, aquela escola onde a miniatura artística é simetricamente proporcional ao tamanho das peças do vestuário.
Beyoncé, que, umpf, atua no filme, tem sua oportunidade de estar nesse veículo que também pode ser o eternizador do tosco que é o cinema e não desperdiçou a sua vez de entrar no hall do American Brega (voltarei ao tema noutro dia). Fazendo o papel da cantora de voz apagada que é elevada a condição de musa pop por causa do rostinho e do corpinho, a ironia é que esse é o papel que a própria Beyoncé desempenha na realidade como representante de uma música chata e pasteurizada, exclusiva para o estímulo de hormônios e não de neurônios.
São tantas as canções e poucas as emoções que não consigo me lembrar de uma sequer pra servir de exemplo didático. Só lembro que são uma tentativa de reviver a black music da Motown, aquela gravadora que ficou famosa nos anos 60 por revelar o talento de Diana Ross, Marvin Gaye, Stevie Wonder e os Jackson 5. Não posso dizer que a tentativa foi bem-sucedida. Os personagens, talvez por medo da indústria americana do processo judicial, foram elaborados, ops, rascunhados levemente nas figuras musicais reais da gravadora. Mas, assim como as canções, mal chegam a ser clones de uma época.
Dessa forma, pelo extremo mau gosto e por sua incapacidade de oferecer um mínimo de força visual ou narrativa, o filme perde a chance de retratar um período histórico e também de rememorar com qualidade artística o estilo de sucesso da Motown. Em suma, é um musical que perdeu a chance de ficar calado.
Comentários
Fico feliz de ver a eficiência com que divides tua opinião sensata.
Ah! estou no limite com estes tais "berros melismáticos".
Ô coisinha chata viu?
Beijos, caro primo.
Mais uma vez, parabéns pelo blog.