Pular para o conteúdo principal

Quem não gosta de berimbau, bom sujeito não é


A Bahia é boa terra / Ela lá, eu aqui, Iaiá

Os versos do samba Quem São Eles, de Sinhô, datam de 1918 e dirigiam-se aos baianos concorrentes das rodas de samba. A essa provocação seguiram-se réplicas e tréplicas em forma de música com a participação do baiano Hilário Jovino Ferreira, um dos pais das escolas de samba cariocas, e dos descendentes de baianos João da Baiana e Donga (autoproclamado autor de Pelo Telefone), e até Pixinguinha.

Noves fora a polêmica entre os compositores populares, a canção popular oriunda dos festejos dos negros era combatida oficialmente e contraditoriamente era celebrada em festas com a presença da elite política que elaborava as leis. Como conta João da Baiana, certa noite seu pandeiro foi tomado pela polícia quando se dirigia a uma festa no palacete do senador Pinheiro Machado, o qual, ao saber do fato, mandou fazer outro pandeiro para o sambista, agora com a seguinte dedicatória, que lhe serviria de salvo-conduto: "A minha admiração, João da Baiana. Pinheiro Machado".

A Bahia era tida como exportadora de mão-de-obra e de folguedos populares, e sua presença na então capital brasileira era descrita por Olavo Bilac numa crônica de 1906 em que se indignava ante a "selvagem presença negra na recém-inaugurada Avenida Central", via a "ressurreição da barbaria" e a "idade selvagem" perturbando a "idade civilizada", e também lamentava que a multidão não se "confinasse na Penha" e fosse "como uma enxurrada vitoriosa para o centro da urbs".

Na crítica de Bilac transparece a condenação das manifestações culturais negras, porém, a despeito das tentativas de expurgo da cultura popular, a Bahia acabou tornando-se ponto de referência elogiosa já nos anos 30. O mineiro Ary Barroso a exaltava em canções como Bahia, No tabuleiro da baiana, Na baixa do sapateiro ou Quando eu penso na Bahia, e Dorival Caymmi louvava a boa terra, seus jangadeiros, seu mar, seus locais encantatórios de Abaeté a Itapoã. Logo, a Bahia, de lugar e povo desprezados, passou ao imaginário brasileiro e mundial como locus de confluência de todos os santos e todos os gostos.

Entretanto, a vida não é uma aquarela brasileira cordial e apaziguadora e o vento do preconceito que bate lá é a ventania da injustiça que bate cá. Apesar da opressão social que sempre marcou as classes populares (entenda-se pobres e/ou negros), seus compositores não deixavam a peteca da auto-estima cair e cantavam sua cultura, sua história e sua geografia. As canções também traduziam sua visão das classes econômicas abastadas, que eram o público e o carrasco daqueles músicos. Assim, as letras traziam crítica social, crítica aos manda-chuvas da política e crítica até a quem desdenhava do samba:

Quem não gosta de samba, bom sujeito não é
É ruim da cabeça ou doente do pé

Estes versos de Dorival Caymmi respondem com moeda musical aos que acusam as danças e os ritmos negros de não terem "estética nem arte" , não possuirem "tom nem som" ou mesmo "espírito e gosto", e que os instrumentos musicais dos negros são "rudes", "bárbaros" e fazem uma "algazarra infernal". Estas acusações, transcritas de declarações dos anos 20 e 30, denotam o preconceito e a distinção etnocêntrica da noção de música. Mas, ora só, eis que da Bahia do século XXI surge uma voz distoante. O coordenador do curso de Medicina da UFBA "diagnosticou" a suposta lerdeza mortis do estudante baiano: a musicalidade que lhe toma o tempo dos estudos. A reação pública foi ligeira: quem não gosta de berimbau, bom sujeito não é.

Aí é que está a questão: é possível NÃO GOSTAR de samba, e por extensão, de música popular e ser um bom sujeito? Ora, isso é fato tão claro como o sol que arde em Itapoã. Os homens de "bom-gosto" e as senhoras de "bom costume" têm na vida outros cuidados que não o de sair atrás do trio elétrico, o que fazem questão de "provar" com as pesquisas que indicam que os ritmos da cultura popular promovem violência, reprovação escolar e rebelião juvenil. Não é preciso fazer apologia nem do Créu nem do Bel (do chiclete com banana) para perceber que pedagogos, psicólogos e moralistas insurgem-se contra os cantores e o público e esquecem das questões sócio-econômicas e culturais ligadas à música.

Por outro lado, há antropólogos "de bom coração" e etnomusicólogos "engajados" que fazem questão de ressaltar que a estética é relativa, que a cultura é relativa, daí o apreciador musical não poder criticar os gêneros musicais populares, pois estaria sendo preconceituoso e, pior das ofensas, elitizado. Vale lembrar que a questão não seria de apreciar estilos, mas de respeitar os sujeitos, o que certamente não o fez o coordenador citado.

É possível GOSTAR de samba e também ser um bom sujeito? A resposta "sim" deveria ser óbvia, mas, para muita gente, é mais fácil o rico e o camelo passarem juntos pelo buraco duma agulha do que um percussionista entrar no paraíso.
Citações do texto foram extraídas desse artigo.

Comentários

Anônimo disse…
pois é. sou baiano e o pior que vejo preconceito vindo de todas as classes e cores. mas, Joezer, quer saber sinceramente? Ninguém pode criticar certos estilos de música popular que já tacham a gente de preconceituoso.
abraços
Anônimo disse…
E eu? q não gosto de samba, nem de rock, nem de funk, nem de axé-music? será preconceito eu preferir pixinguinha e villa-lobos?

Postagens mais visitadas deste blog

o mito da música que transforma a água

" Música bonita gera cristais de gelo bonitos e música feia gera cristais de gelo feios ". E que tal essa frase? " Palavras boas e positivas geram cristais de gelo bonitos e simétricos ". O autor dessa teoria é o fotógrafo japonês Masaru Emoto (falecido em 2014). Parece difícil alguém com o ensino médio completo acreditar nisso, mas não só existe gente grande acreditando como tem gente usando essas conclusões em palestras sobre música sacra! O experimento de Masaru Emoto consistiu em tocar várias músicas próximo a recipientes com água. Em seguida, a água foi congelada e, com um microscópio, Emoto analisou as moléculas de água. Os cristais de água que "ouviram" música clássica ficaram bonitos e simétricos, ao passo que os cristais de água que "ouviram" música pop eram feios. Não bastasse, Emoto também testou a água falando com ela durante um mês. Ele dizia palavras amorosas e positivas para um recipiente e palavras de ódio e negativas par

paula fernandes e os espíritos compositores

A cantora Paula Fernandes disse em um recente programa de TV que seu processo de composição é, segundo suas palavras, “altamente intuitivo, pra não dizer mediúnico”. Foi a senha para o desapontamento de alguns admiradores da cantora.  Embora suas músicas falem de um amor casto e monogâmico, muitos fãs evangélicos já estão providenciando o tradicional "vou jogar fora no lixo" dos CDs de Paula Fernandes. Parece que a apologia do amor fiel só é bem-vinda quando dita por um conselheiro cristão. Paula foi ao programa Show Business , de João Dória Jr., e se declarou espírita.  Falou ainda que não tem preconceito religioso, “mesmo porque Deus é um só”. Em seguida, ela disse que não compõe sozinha, que às vezes, nas letras de suas canções, ela lê “palavras que não sabe o significado”. O que a cantora quis dizer com "palavras que não sei o significado"? Fiz uma breve varredura nas suas letras e, verificando que o nível léxico dos versos não é de nenhu

Bob Dylan e a religião

O cantor e compositor Bob Dylan completou 80 anos de idade e está recebendo as devidas lembranças. O cantor não é admirado pela sua voz ou pelos seus solos de guitarra. Suas músicas não falam dos temas românticos rotineiros, seu show não tem coreografias esfuziantes e é capaz de este que vos escreve ter um ataque de sonolência ao ouvi-lo por mais de 20 minutos. Mas Bob Dylan é um dos compositores mais celebrados por pessoas que valorizam poesia - o que motivou a Academia Sueca a lhe outorgar um prêmio Nobel de Literatura. De fato, sem entrar na velha discussão "letra de música é poesia?", as letras das canções de Dylan possuem lirismo e força, fugindo do tratamento comum/vulgar dos temas políticos, sociais e existenciais. No início de sua carreira musical, Dylan era visto pelos fãs e pela crítica como o substituto do cantor Woody Guthrie, célebre pelo seu ativismo social e pela simplicidade de sua música. Assim como Guthrie, o jovem Bob Dylan empunhava apenas seu violão e ent