Pular para o conteúdo principal

A liberdade não é só uma casa grande

13 de maio de 2008: 120 anos da Lei Áurea, que alforriava os escravos mas os lançava no limbo social, onde nem eram livres realmente nem escravos propriamente. Embora houvesse abolicionistas de todas as cores e credos, muitos ainda confundiam (confundem) inteligência, cultura e religião com geografia, outorgando o bom, o belo e o justo somente a uns poucos eleitos estrangeiros.

Em Os Tambores de São Luís, grande romance em que Josué Montello traça um painel da sociedade escravocrata maranhense (por opção, mas brasileira por extensão), o negro Damião é um personagem que percebe a hipocrisia da casa-grande cristã durante uma visita do bispo da capital:

"Por que era escravo? E porque também eram escravos os negros que enchiam a capela? ... Deus estaria de acordo com aquela distinção? Uns livres, outros escravos? Uns sentados, outros de pé? No entanto, ali na fazenda, os brancos constituíam a maioria privilegiada, que oprimia a multidão de negros, sem lhes dar direito a nada, nem mesmo ao banco vazio da capela ...Não seria o caso de perguntar ao bispo o que fazia Deus que não tirava os pretos do cativeiro? Ou o Deus era dos brancos e não dos negros?"

"As chibatas, as palmatórias, o tronco, as gargalheiras, o libambo, as máscaras de flandres, tudo tinha sido escondido, para evitar que sobre esses instrumentos de castigo resvalasse o olhar de Sua Reverendíssima"... "Quando o bispo fosse embora, as chibatas, as palmatórias e o tronco voltariam aos seus lugares, bem visíveis, para que os negros se atemorizassem só em olhá-los."

O papa Bento XVI, sobre o extermínio de judeus pelo nazismo: "onde estava Deus nesses dias? Por que ficou silencioso?". Como é que é? Quer dizer que o bicho-homem comete suas canalhices de cada dia, assola a terra com seus vitupérios milenares, pisa no pescoço do próximo para ser mais admirado e então recorre a Deus para eximir-se da chacina e da culpa? É Deus alguma espécie de vovô pra viver tirando nossa mão da cumbuca, um xerife pra apartar nossas brigas de gentalha? Por que Deus tem que intervir em situações que homens e mulheres podem resolver?

A resposta de um jornalista londrino ao papa - devolvendo a pergunta: "onde estava a Igreja naqueles dias?" - poderia ser uma resposta possível ao clamor de Damião.

Na época da escravidão oficial, Castro Alves alinhavava algo assim: "Quebrem o cetro do papa / Façam dele uma cruz / Sua púrpura lancem ao povo / Para cobrir seus ombros nus".

As páginas de Josué Montello encontram eco nos belos versos do professor e compositor Gladir Cabral, que na canção "Casa Grande" descreve esse cruel oxímoro que é o "cristão escravocrata".

A casa grande é branda como a seda
Acolchoada, fina e nobre como a renda
Mas aqui fora reina a lei da reprimenda
Da palmatória, nossa paga, nossa prenda

Doutores, caros, fortes, ricos e senhores
Que suspirais pela janela dos amores
Olhai por nós, marcados por terríveis dores
De vós vêm nossas esperanças e temores

Os nossos corpos sendo mortos pouco a pouco
Os nossos sonhos já desfeitos, todos loucos
Na casa grande há uma cruz numa parede

Sipaúba, escravo como Damião, diz a este:
"-Nem drumindo a gente é livre. Ontem de noite, sonhei que tava no tronco, apanhando. Acordei gemendo, molhado de suó.
-Também já tive um sonho assim - confessou Damião, de vista baixa, após um silêncio".


No coração de um negro há uma casa nova
Sem palmatória, sem corrente obrigatória
Sem mais senhores, todos são de todo amigos
E nas paredes não há Cristos esquecidos

Nessa fazenda Deus é gente aproximada
É tempo inteiro, tarde, noite e madrugada
Motiva encontro, comunhão e caminhada
Faz liberdade ser bem mais que uma palavra

Os nossos corpos redimidos num momento
Bem mais veloz que a luz de todo pensamento
A nossa casa é muito mais que uma fazenda

Livros e canções apontam o que escraviza a alma dos homens. Muitos, movidos por um hedonismo nunca satisfeito, dizem ser livres em sua busca por matar sua sede de justiça e diversão, de materialidade e imediatismo nas fontes rotas de uma liberdade escravizante. Outros, cuidam de fazer da sua religião um açoite que aterroriza até a si mesmos, fazendo-se não de servos humildes, mas de feitores sem misericórdia. Mas há ainda quem trabalhe e espere pela liberdade redentiva, ainda que tardia ou abandonada nos púlpitos e esquecidas nas paredes.
Clique aqui para ler análise da canção Casa Grande e do cd de Regina Mota.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

o mito da música que transforma a água

" Música bonita gera cristais de gelo bonitos e música feia gera cristais de gelo feios ". E que tal essa frase? " Palavras boas e positivas geram cristais de gelo bonitos e simétricos ". O autor dessa teoria é o fotógrafo japonês Masaru Emoto (falecido em 2014). Parece difícil alguém com o ensino médio completo acreditar nisso, mas não só existe gente grande acreditando como tem gente usando essas conclusões em palestras sobre música sacra! O experimento de Masaru Emoto consistiu em tocar várias músicas próximo a recipientes com água. Em seguida, a água foi congelada e, com um microscópio, Emoto analisou as moléculas de água. Os cristais de água que "ouviram" música clássica ficaram bonitos e simétricos, ao passo que os cristais de água que "ouviram" música pop eram feios. Não bastasse, Emoto também testou a água falando com ela durante um mês. Ele dizia palavras amorosas e positivas para um recipiente e palavras de ódio e negativas par

paula fernandes e os espíritos compositores

A cantora Paula Fernandes disse em um recente programa de TV que seu processo de composição é, segundo suas palavras, “altamente intuitivo, pra não dizer mediúnico”. Foi a senha para o desapontamento de alguns admiradores da cantora.  Embora suas músicas falem de um amor casto e monogâmico, muitos fãs evangélicos já estão providenciando o tradicional "vou jogar fora no lixo" dos CDs de Paula Fernandes. Parece que a apologia do amor fiel só é bem-vinda quando dita por um conselheiro cristão. Paula foi ao programa Show Business , de João Dória Jr., e se declarou espírita.  Falou ainda que não tem preconceito religioso, “mesmo porque Deus é um só”. Em seguida, ela disse que não compõe sozinha, que às vezes, nas letras de suas canções, ela lê “palavras que não sabe o significado”. O que a cantora quis dizer com "palavras que não sei o significado"? Fiz uma breve varredura nas suas letras e, verificando que o nível léxico dos versos não é de nenhu

Nabucodonosor e a música da Babilônia

Quando visitei o museu arqueológico Paulo Bork (Unasp - EC), vi um tijolo datado de 600 a.C. cuja inscrição em escrita cuneiforme diz: “Eu sou Nabucodonosor, rei de Babilônia, provedor dos templos de Ezágila e Égila e primogênito de Nebupolasar, rei de Babilônia”. Lembrei, então, que nas minhas aulas de história da música costumo mostrar a foto de uma lira de Ur (Ur era uma cidade da região da Mesopotâmia, onde se localizava Babilônia e onde atualmente se localiza o Iraque). Certamente, a lira integrava o corpo de instrumentos da música dos templos durante o reinado de Nabucodonosor. Fig 1: a lira de Ur No sítio arqueológico de Ur (a mesma Ur dos Caldeus citada em textos bíblicos) foram encontradas nove liras e duas harpas, entre as quais, a lira sumeriana, cuja caixa de ressonância é adornada com uma escultura em forma de cabeça bovina. As liras são citadas em um dos cultos oferecidos ao rei Nabucodonosor, conforme relato no livro bíblico de Daniel, capítulo 3. Aliás, n