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Música Impopular

Vassily Kandinsky, no ensaio “On the Spiritual in Art”, de 1910: Nossa alma, que somente agora acorda de um longo período de materialismo, oculta dentro de si as sementes da falta de esperança, de fé e de sentido. O pesadelo dos ideais materialistas ainda não passou, ideais que fizeram uma piada maldosa e sem graça do universo. A alma que desperta ainda se encontra sob a influência deste pesadelo.

Kandinsky acreditava que o despertar da alma do pesadelo do materialismo dependia de artistas que resistissem à dominação e ao determinismo do mundo exterior, descobrindo seus próprios mundos de valores estéticos intrínsecos. O principal interesse de Kandinsky era a arte visual, mas ele era um pianista e violoncelista amador, mas voltou-se à música, “a mais não-material das artes”, como fonte de inspiração:

A esse respeito, a música é a mais instrutiva das artes. Com algumas exceções e divergências, a arte musical jamais é um meio que reproduz ilusoriamente um fenômeno natural. Ao contrário, a música sempre utiliza seu meio de comunicação para expressar a vida emocional do artista e, a partir desse meio, cria uma vida original de tons musicais. O artista que não vê sentido em representar a natureza artisticamente e, enquanto criador, busca verter seu mundo interior em forma exterior inveja a música – a mais não-material das artes – por sua facilidade de atingir este objetivo.

Há tempo para toda música debaixo do sol. Música para o corpo, para o cérebro, para o coração. Música somática, dinamogênica, física. Música matemática, cerebral, racional. Música espiritual, música integral.

Obviamente, a música tem diferentes significados para diferentes pessoas. Para alguns, é um passatempo, um hobby cultivado. Para outros, é um veículo de relaxamento e distração. Música pode se tornar apenas um fundo sonoro para atividades díspares como varrer a casa e correr no parque. Música pode ser irritante dependendo do lugar e do volume: seja um concerto de Schumann nos alto-falantes de um ônibus ou um petardo do Latino na festa do vizinho.

Os atuais hits pop teleradiofônicos já tem apólogos demais, ondas de rádio demais, faustões demais, aficionados demais pra que eu abuse dos bits e bytes, pra que suas pupilas percam tempo lendo minhas e-missivas predestinadas ao anonimato (sigo rumo ao anonimato, ok, mas vou contrariado).

Por isso que é sobre a "música impopular" que vou escrevendo (expressão do livro do maestro Julio Medaglia). Impopular porque no anseio autoritário por novidade ela vai sendo esquecida. Impopular não é a música chamada erudita; é qualquer música que não se destine ao sucesso sazonal de um verão. Impopular porque se apresenta com mais sentido do que o duplo sentido. Impopular porque menos popular do que merece, mesmo que as vendas on-line de música impopular tenham aumentado animadoramente. Ao contrário do que se passa nos mais baixos sonhos dos mercadores da música, há uma gente que não quer só o pop, mas quer Pixinguinha e Bach, Tom e Stravinsky, Miles e Mozart, e claro, as novas gerações de competentes músicos impopulares (alguns, como eu, ainda acrescentariam Bill Gaither e Jader Santos).

Mas como querer algo que não se conhece? Como os meninos vão querer ser químicos se só os Ronaldos “se dão bem na vida”? Como querer ser violoncelista se as Grazis e Iris é que tem milhares de, vá lá, leitores? Como ainda querer a música impopular quando os etnomusicólogos lhe chamam de música elitizada, sendo “elite” uma ofensa na academia antropologicamente correta?

A família Médici, mecenas das artes de outros séculos, dá nome agora ao site http://www.medici.tv/, onde há diversos concertos com qualidade de imagem e de som (disponíveis por tempo limitado). E enquanto as nossas chances de assistir a um concerto ao vivo da Sinfônica de Berlim permanecerem diminutas, com alguns cliques você pode assisti-la aqui tocando Brams e Bartók no festival de Aix-en-Provence.

Comentários

Thais L. disse…
Parabéns pela elucidação. Encontrei o teu artigo procurando pelo livro 'Música Impopular' do Júlio.

Candé diz uma coisa interessante: o descompasso, a defasagem, ou como quiser, sempre existiu.. no entanto, é rapidamente superada. Primeiramente percebidas como "anomalias" [ou loucuras], as novidades são integradas à tradição, servindo, por sua vez, para controlar novos progressos. O que é preocupante, porém, é que a recusa categórica da música moderna e contemporânea por parte da maioria do público é uma singularidade só do nosso tempo!

o atual ouvinte da música erudita, inclusive, nos 2 ultimos séculos distingue-se por seu conservadorismo estético. Voltamos à música antiga, clássica ou romântica. Grupos e mais grupos antigos se formam, conquanto não estejamos acostumanos a linguagens seriais e bla bla bla. Nossos ouvidos acostumaram-se ao que já conhecem, tbm, pela resistência da indústria musical, esta fornece música "pronta para ouvir": sem tanto serialismo ou cromatismo; volta Mozart e Vivaldi.

A indústria músical é tbm "ramo florescente do show business", música de consumo sem vaslor artístico, fácil de produzir e vender, cuja demanda é culpa da indústria! E diz Adorno: "O público é sempre melhor do que os que apelam para ele a fim de impedir o que seria digno do homem".

O serialismo [só pra exemplificar] passou por maus bocados...Houve [há] tbm resistência das instituições, dos conservatórios, por ex; houve, ainda, intervenção política [totalitarismos, como na China comunista - a 'Lady Macbeth'do Chostacovitch foi severamente condenada após 2 anos de sucesso, por ser"confusa e absolutamente privada de toda e qq idéia política"].

Ha muito o que falar sobre esse tema, o artista atual é suspeito por ser subversivo. E nós carecemos de linguagem e 'não queremos' o que é passível de incompreensão e estranheza.

Agora procuro com mais ensiedade o livro Música Impopular.
joêzer disse…
Thais,
Adorno não está completamente correto quando diz que a música "industrial", "comercial" não tem valor artístico ou é fácil de produzir e vender.
Há outros peões nesse xadrez: ele, Adorno, é quem decide que música tem ou não valor artístico. Será que toda música da vanguarda do século XX tem valor artístico?
Agora é fato que somos a comunidade musical mais conservadora de todos os tempos no que tange à música de concerto.
Mas experimente "música impopular". Leia quando puder "O resto é ruído", de Alex Ross. taí uma boa compreensão da música do século XX.

valeu pelos comentários.
Thais L. disse…
Falo mesmo com relação a música erudita impopular, e das influências jazzísticas, dodecafônicas, politonalidades e utilização de novos materiais bastante reprimidas na indústria musical, que faz com que a comunidade recorra à segurança polifônica, cadenciada e consonante, quase metafísica, da música barroca ou à técnica exacerbada, embora melodiosa e consonante da música clássica, a um pouco de paixão técnica na música romântica, particularmente de Chopin, Debussy ainda vai [não com muito entusiasmo] e cada vez menos, depois disso.
Com relação a música impopular mais abrangente, que deve ter alguma semelhança com essas influências citadas eu já não sei tanto, =] em função disso a minha ansiedade pelo livro e meu interesse em seu artigo.
Adorno pode ter exagerado no 'digno do homem', rs, mas a ídéia é a resistência da indústria musical a coisas novas e nisso eu acredito que haja razão.
Thais L. disse…
Que coisa, você leu Ortodoxia!
Gosto bastante.
joêzer disse…
às vezes penso que os programadores de concerto morrem de medo da falta de assinaturas e aí tome a enésima apresentação da 5ª de Beethoven.

Ortodoxia me deu uma perspectiva sobre religião (e sobre como escrever sobre religião e qualquer outro assunto).
Dele estou lendo agora "O homem eterno". boas coisas, boas coisas.
Outro dia, o Vladimir Safatle (usp) citou Chesterton num texto na Cult.
Estamos "in". rsrs

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