Pular para o conteúdo principal

os morangos silvestres da sabedoria

Já ouvi (ou penso ter ouvido) a frase saída da boca de um homem velho, cansado e doente: “A sabedoria nos chega numa idade em que já não nos serve para nada”. Quando ouço os ex-jogadores Edmundo e Neto falando dos erros cometidos que sabotaram a própria carreira, entendo o que quis dizer aquele idoso. Talvez, se sábios fossem, tivessem agido diferente ao longo da vida.

Para o doutor Isak Borg, apesar das cãs de seus 73 anos, a sabedoria nem sequer chegou. Borg, o protagonista da obra-prima Morangos Silvestres (1957), viaja de carro até uma cidade onde receberá um título acadêmico. No trajeto lhe acompanha sua nora e três jovens que lhe pedem carona. Ao longo da viagem, ele faz uma revisão de sua vida e começa a perceber o quanto se afastou dos seus ideais de juventude.

Os morangos silvestres colhidos agora pela sua memória, além de representarem a porta para relembrar a inocência distante, simbolizam os simples prazeres da vida que ele trocou por aquisições intelectuais.

Doces recordações são nubladas pela proximidade da morte, o que atormenta o doutor Borg com pesadelos terríveis (um deles, que envolve uma rua vazia, um homem sem rosto, e uma carruagem de onde cai um ataúde – mais que isso não posso dizer –, é encenado no começo do filme com uma genialidade rara).

Em uma cena memorável, Isak Borg sonha que está numa sala em que as pessoas que ele menosprezou comparecem como testemunhas mudas de sua indiferença ao convívio de amigos e familiares. Um homem lhe pergunta: “Qual o primeiro dever de um médico?” Isak Borg não lembra ou não sabe. A resposta é um golpe direto: “O primeiro dever de um médico é pedir desculpas!” Borg admite, então, que o castigo para ele é a solidão, a clausura de soberba e autossuficiência em que ele mesmo se aprisionou.

Mas o personagem é alguém que, na sua reavaliação do passado, vai enfim encontrando a reconciliação consigo e com a família.

O cineasta Ingmar Bergman é um mestre na arte de mudar o tom da narrativa da melancolia para a alegria, e de volta para a melancolia e depois para a serena harmonia. Esse encadeamento é sutil e desenrola-se com o auxílio de uma belíssima fotografia em preto e branco e da atuação não menos que sublime de Victor Sjöström, cujas rugas transmitem o desconsolo de um homem que se refugia em recordações juvenis.

Morangos Silvestres não quer ser mais um passatempo esquecível no nosso precioso tempo. É um filme que pesa assuntos que não queremos por na balança, como a morte, a solidão, a velhice. Mas muitos de nós parecemos tão cansados (e nos sentimos tão longe do fim da vida) que só nos contentamos com um entretenimento passageiro, algo banal que nos faça esquecer nossa mortalidade, nosso aprendizado diário de convivência.

É um filme sem pressa, mas que absorve rapidamente o espectador. Sem pressa, diga-se, mas absolutamente sem tédio. A menos que você esteja atrás de balas, beijos e bombas para se entreter.

Comentários

Luciana Teixeira disse…
tá na minha lista :)

Postagens mais visitadas deste blog

o mito da música que transforma a água

" Música bonita gera cristais de gelo bonitos e música feia gera cristais de gelo feios ". E que tal essa frase? " Palavras boas e positivas geram cristais de gelo bonitos e simétricos ". O autor dessa teoria é o fotógrafo japonês Masaru Emoto (falecido em 2014). Parece difícil alguém com o ensino médio completo acreditar nisso, mas não só existe gente grande acreditando como tem gente usando essas conclusões em palestras sobre música sacra! O experimento de Masaru Emoto consistiu em tocar várias músicas próximo a recipientes com água. Em seguida, a água foi congelada e, com um microscópio, Emoto analisou as moléculas de água. Os cristais de água que "ouviram" música clássica ficaram bonitos e simétricos, ao passo que os cristais de água que "ouviram" música pop eram feios. Não bastasse, Emoto também testou a água falando com ela durante um mês. Ele dizia palavras amorosas e positivas para um recipiente e palavras de ódio e negativas par

paula fernandes e os espíritos compositores

A cantora Paula Fernandes disse em um recente programa de TV que seu processo de composição é, segundo suas palavras, “altamente intuitivo, pra não dizer mediúnico”. Foi a senha para o desapontamento de alguns admiradores da cantora.  Embora suas músicas falem de um amor casto e monogâmico, muitos fãs evangélicos já estão providenciando o tradicional "vou jogar fora no lixo" dos CDs de Paula Fernandes. Parece que a apologia do amor fiel só é bem-vinda quando dita por um conselheiro cristão. Paula foi ao programa Show Business , de João Dória Jr., e se declarou espírita.  Falou ainda que não tem preconceito religioso, “mesmo porque Deus é um só”. Em seguida, ela disse que não compõe sozinha, que às vezes, nas letras de suas canções, ela lê “palavras que não sabe o significado”. O que a cantora quis dizer com "palavras que não sei o significado"? Fiz uma breve varredura nas suas letras e, verificando que o nível léxico dos versos não é de nenhu

Nabucodonosor e a música da Babilônia

Quando visitei o museu arqueológico Paulo Bork (Unasp - EC), vi um tijolo datado de 600 a.C. cuja inscrição em escrita cuneiforme diz: “Eu sou Nabucodonosor, rei de Babilônia, provedor dos templos de Ezágila e Égila e primogênito de Nebupolasar, rei de Babilônia”. Lembrei, então, que nas minhas aulas de história da música costumo mostrar a foto de uma lira de Ur (Ur era uma cidade da região da Mesopotâmia, onde se localizava Babilônia e onde atualmente se localiza o Iraque). Certamente, a lira integrava o corpo de instrumentos da música dos templos durante o reinado de Nabucodonosor. Fig 1: a lira de Ur No sítio arqueológico de Ur (a mesma Ur dos Caldeus citada em textos bíblicos) foram encontradas nove liras e duas harpas, entre as quais, a lira sumeriana, cuja caixa de ressonância é adornada com uma escultura em forma de cabeça bovina. As liras são citadas em um dos cultos oferecidos ao rei Nabucodonosor, conforme relato no livro bíblico de Daniel, capítulo 3. Aliás, n