Nos debates sobre música cristã, são convocados argumentos bíblicos,
históricos, culturais, evangelísticos, comportamentais e até argumentos
biológicos, psicofísicos e acústicos. Sem contar as lendas evangélicas urbanas como
mensagens subliminares, vegetais que só gostam de Mozart etc.
Eu gostaria de entrar no debate com dois argumentos: o da
estabilidade sociorreligiosa e o da fetichização musical.
O argumento da estabilidade: em uma prática musical
comunitária, costuma-se observar, de um lado, uma comunidade que exerce um poder de
controle sobre sua música considerada sagrada. Qualquer inovação musical é
vista, a princípio, como um fator desestabilizador ou desviante da sacralidade
de sua música. O controle é necessário para manter a estabilidade do sagrado atribuído a um dado repertório musical. Sem essa estabilidade
sociorreligiosa, a comunidade pode entrar em conflito religioso e cultural.
De
outro lado, observa-se o poder dessa música sagrada sobre a comunidade que a
preserva. Devido aos supostos efeitos de tal música ou prática musical,
procura-se manter o grandioso repertório musical dos ancestrais fundadores como
um legado. Como diz o etnomusicólogo José Jorge de Carvalho (UNB), “ali se
manifesta o poder da própria música sobre a comunidade em que é praticada”.
O argumento do fetiche musical: há alguns anos, o cantor Paul
Simon veio ao Brasil gravar uma canção com os músicos do Olodum. Michael
Jackson também veio gravar com músicos brasileiros numa favela. Mas qual o interesse dos dois popstars na
música afro-brasileira, já que os tambores e os ritmos do Olodum aparecem no
clipe, mas quase sumiram na mixagem da canção? Os artistas e produtores estrangeiros costumam enxergar a música afro não em sua totalidade de função e contexto, mas somente como um símbolo de
sensualidade e corporalidade, como um fetiche cultural.
O que esse argumento tem a ver com o atual estágio da música cristã no Brasil? Explico. As igrejas do
evangelicalismo contemporâneo adotaram a integralidade dos estilos musicais
veiculados nas rádios e TVs. Rock e pagode, funk e sertanejo, reggae e forró,
estilos internacionais e nacionais foram apropriados pelos métodos de
evangelismo e pelas propostas litúrgicas mais recentes.
A música de “raiz”
brasileira (como o baião e o samba) ainda é vista como um símbolo de afirmação de
identidade nacional e, por isso, deveria ser incluída como base musical do
repertório cristão. Assim, a música popular nacional é enxergada como representação de brasilidade e autenticidade cultural. A música pop internacional é tida como o idioma da juventude urbana e, sendo assim, é apropriada como um emblema de contemporaneidade, de atração jovem. De um lado, resiste um ufanismo nacional-religioso que justifica o
“abrasileiramento” da música cristã, e de outro, vigora um padrão de
evangelismo jovem que justifica a “modernização” da música cristã.
A discussão sobre música cristã passa pela adequação
litúrgica dos estilos e pelo pragmatismo de mercado, mas também é preciso verificar se uma determinada comunidade
religiosa com diferentes grupos etários e culturais reunida num templo se sente à vontade com mudanças litúrgicas mais
radicais e “emergentes”. Se o debate não cessa, que ao menos fique livre de tradicionalismos obscurantistas e inovações irrefletidas.
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