Pular para o conteúdo principal

A culpa não é do amor

Em Crime e Castigo, Raskolnikov é um niilista com mania de grandeza que mata friamente e depois é tomado do sentimento humano de culpa que acreditava ter exterminado junto com a vítima. Fico pensando se a elite de negociação paulista não esperou que o seqüestrador da moça Eloá incorporasse Raskolnikov e que ele, não suportando mais os reclames da consciência, rumasse pacificamente para os braços do Pai-Estado. Esqueceu-se, porém, que na história de Dostoiveski, o personagem primeiro mata e só mais tarde é que se entrega devorado pelo remorso.

No entanto, uma sucessão de gestos tresloucados começou desde que Lindemberg, o rapaz acometido de ciúme doentio - e como todo ciúme, mesmo o “saudável”, já carrega o vírus da loucura passional -, tomou Eloá como refém, como que obrigando a garota a sentir os mesmos carinhos que outrora nutriram mutuamente. Esses moços, pobres moços, ignoram que o coração das adolescentes é um passarinho que desde antes do orkut não tem gaiola que prenda por mais de duas longas semanas.

Da menina Eloá pouco se pode dizer nesses primeiros momentos. Porém, mesmo o desamor da menina pelo ex-namorado ou o típico exibicionismo juvenil pela internet, nada disso justifica um assassinato. Além do mais, culpar a adolescente é só uma amostra do atávico machismo que não ousa perder uma paixão.

O que dizer ainda da refém Nayara, que inacreditavelmente retornou ao cenário do cativeiro, seja por conta própria ou por conta da polícia. Por causa da intimidade com a amiga Eloá e por conhecer o relacionamento anterior de ambos, teria ela deixado de enxergar a terrível situação em que se encontraria outra vez?

Da polícia: confiou-se que tudo estava mais para briga de namorados? Suspeitou-se de que meramente se tratava de um destempero passional.? Apesar das negociações, dos diálogos, o que a população registrará da ação policial é: uma refém morreu, outra está hospitalizada, o seqüestrador passa bem.

Dos presos: as celas se acham mais dignas do que o rapaz assassino, os presos exercem um estranho senso de justiça e ameaçam a quem poderiam receber como um igual, pois todos erraram gravemente e não há um justo sequer, não nenhum.

Um fato que passou despercebido, mas não surpreende, é que Lindemberg, em suas últimas conversas pelo celular com os policiais, disse que estava ouvindo duas vozes diferentes. Uma lhe dizia para se acalmar e perceber a insanidade dos seus atos ali. A outra lhe dizia para “cobrar”, para ir até o fim. Desta última voz o seqüestrador dizia que era de um “diabinho”. Vale perceber que antes do trágico desfecho o rapaz tinha noção do certo e do errado, do bem e do mal. Some-se a fome, o sono, a fadiga física e mental, e vê-se que a escolha que fez obedeceu ao desejo de vingança.

De todos os crimes, aqueles cometidos em nome da paixão não-correspondida são, se é possível dizer assim, os mais indesculpáveis. Alcança pobres, remediados e ricos. O assassino passional não pode justificar-se na pobreza nem na riqueza, nem pode culpar a família, a escola ou a sociedade. Ele só pode assumir-se como o único responsável que ainda tenta pôr a conta nos desatinos do amor. Do amor? Culpar o amor é mais uma invenção humano-diabólica, porque só se mata por não amar.

Comentários

André Reis disse…
Pura tragédia, desde a incompetência da polícia até a insanidade dos pais de deixar a filha namorar qualquer doido da rua.

É uma tragédia para todo o Brasil...
Julison disse…
O André citou um ponto importante no comentário anterior: "a filha namorar qualquer doido da rua"... Apesar de, na minha opinião, ser muito difícil os pais proibirem (acabam namorando escondido), seria bom tanto em casa quanto na escola e até igreja, que esse assunto fosse discutido... e o meu conselho para as mulheres: CONHEÇAM ANTES COM QUEM VOCÊS VÃO SE "ENROLAR"!!!!

Postagens mais visitadas deste blog

o mito da música que transforma a água

" Música bonita gera cristais de gelo bonitos e música feia gera cristais de gelo feios ". E que tal essa frase? " Palavras boas e positivas geram cristais de gelo bonitos e simétricos ". O autor dessa teoria é o fotógrafo japonês Masaru Emoto (falecido em 2014). Parece difícil alguém com o ensino médio completo acreditar nisso, mas não só existe gente grande acreditando como tem gente usando essas conclusões em palestras sobre música sacra! O experimento de Masaru Emoto consistiu em tocar várias músicas próximo a recipientes com água. Em seguida, a água foi congelada e, com um microscópio, Emoto analisou as moléculas de água. Os cristais de água que "ouviram" música clássica ficaram bonitos e simétricos, ao passo que os cristais de água que "ouviram" música pop eram feios. Não bastasse, Emoto também testou a água falando com ela durante um mês. Ele dizia palavras amorosas e positivas para um recipiente e palavras de ódio e negativas par

paula fernandes e os espíritos compositores

A cantora Paula Fernandes disse em um recente programa de TV que seu processo de composição é, segundo suas palavras, “altamente intuitivo, pra não dizer mediúnico”. Foi a senha para o desapontamento de alguns admiradores da cantora.  Embora suas músicas falem de um amor casto e monogâmico, muitos fãs evangélicos já estão providenciando o tradicional "vou jogar fora no lixo" dos CDs de Paula Fernandes. Parece que a apologia do amor fiel só é bem-vinda quando dita por um conselheiro cristão. Paula foi ao programa Show Business , de João Dória Jr., e se declarou espírita.  Falou ainda que não tem preconceito religioso, “mesmo porque Deus é um só”. Em seguida, ela disse que não compõe sozinha, que às vezes, nas letras de suas canções, ela lê “palavras que não sabe o significado”. O que a cantora quis dizer com "palavras que não sei o significado"? Fiz uma breve varredura nas suas letras e, verificando que o nível léxico dos versos não é de nenhu

Nabucodonosor e a música da Babilônia

Quando visitei o museu arqueológico Paulo Bork (Unasp - EC), vi um tijolo datado de 600 a.C. cuja inscrição em escrita cuneiforme diz: “Eu sou Nabucodonosor, rei de Babilônia, provedor dos templos de Ezágila e Égila e primogênito de Nebupolasar, rei de Babilônia”. Lembrei, então, que nas minhas aulas de história da música costumo mostrar a foto de uma lira de Ur (Ur era uma cidade da região da Mesopotâmia, onde se localizava Babilônia e onde atualmente se localiza o Iraque). Certamente, a lira integrava o corpo de instrumentos da música dos templos durante o reinado de Nabucodonosor. Fig 1: a lira de Ur No sítio arqueológico de Ur (a mesma Ur dos Caldeus citada em textos bíblicos) foram encontradas nove liras e duas harpas, entre as quais, a lira sumeriana, cuja caixa de ressonância é adornada com uma escultura em forma de cabeça bovina. As liras são citadas em um dos cultos oferecidos ao rei Nabucodonosor, conforme relato no livro bíblico de Daniel, capítulo 3. Aliás, n