Amigos e links me contam sobre o português Daniel Spencer que está no Brasil conduzindo palestras relacionadas à música, cinema e TV e sua influência nas atitudes humanas. Eu o ouvi em uma gravação de áudio (mp3): Spencer sabe destacar os pontos essenciais e é bem-humorado. Mas talvez já exista uma certa fadiga do público mais escolarizado quanto a palestras dessa ordem, considerando que, em geral, muitos palestrantes abusam de chavões, tom de voz exaltado e interpretação canhestra dos exemplos de áudio e vídeo.
Mas há alguns pontos abordados em palestras sobre música e religião que quero comentar nesse espaço. Estendendo tais pontos para além do simplismo habitual e da falta de acuidade histórica e musicológica, e ainda sem criticar especificamente fulano, sicrano ou mascherano, quero abrir o debate.
1) A música religiosa e secular dos negros nos EUA do século XIX: há palestrantes que ignoram o contexto histórico do surgimento do pentecostalismo e do desenvolvimento da música afro-americana.
Houve uma conversão em massa de negros ao protestantismo nos EUA do século XIX e início do XX enquanto uma outra leva de descendentes de escravos optou por atividades musicais seculares. Tal conversão era seguida de intensa segregação racial por parte da maioria protestante (eram os tempos imorais de separação oficial entre igrejas para brancos e igrejas para negros), o que deixou aqueles recém-conversos à margem do conhecimento litúrgico e doutrinário mais profundo. Assim, cada nova igreja abraçava o pentecostalismo e sua ênfase no êxtase emocional e espiritual, o que era muito mais próximo da cultura de transe das religiões de matriz africana. Nesse processo, o gospel e o spiritual podem ter sido separados do jazz e do blues no nascimento, mas se reencontrariam nos anos 1920 dentro das igrejas.
2) Músicos que fizeram pacto satânico: Daniel Spencer fala do mito do pacto demoníaco feito pelo músico Robert Johnson (um dos pais do blues). Há quem diga que essa história é uma criação de invejosos guitarristas da época e que se originou em um contexto místico-religioso específico (hoje, se alguém é um virtuose em seu instrumento ninguém dirá que o indivíduo fez um pacto com o diabo; seria negar a dedicação, o estudo diligente, a criatividade desenvolvida e a disposição motora natural). Seja como for, o bluesman Johnson também não negava a história (dizia-se que o violinista Nicolau Paganini tinha pacto com o demônio - por verdade ou por folclore, ele também não ‘abjurava’ o tal pacto).
3) Diferença entre o público pop e o público do período clássico-romântico: costuma-se diferenciar a recepção do público histérico dos Beatles do público tranqüilo que aplaudia Beethoven. Mas esquece-se que, também no século XIX, as divas da ópera eram ovacionadas com assobios e gritos, que o pianista e compositor Franz Liszt recebia cartas e propostas amorosas e lhe atiravam flores (y otras cositas más) em sua passagem, que Paganini até alimentava essa histeria, e que os Beatles, não suportando o assédio fanático do público e a gritaria dos shows, deixaram de fazer concertos públicos a partir de 1965.
4) Mensagens subliminares: há palestrantes que adoram assombrar o público com mensagens demoníacas escondidas na rotação reversa de um disco. A maioria dos exemplos de aúdio são seguidos de malabarismos de interpretação (se alguém não disser de antemão o que está sendo cantado não se adivinha uma palavra). Ora, a propaganda de valores anti-cristãos sempre esteve bem explícita nas letras, na indumentária e no comportamento de muito ídolos pop. Acertadamente, Daniel Spencer diz que este é um recurso dos anos 70 para promover os álbuns, mas que também dizia muito sobre a aproximação pessoal dos cantores com o misticismo. Em outro momento, Spencer afirma que o emprego das ‘mensagens subliminares’ na música é algo que já não merece nossa atenção (Ao final, indico artigo sobre mensagens diretas e nada subliminares na música).
5) O poder da música sobre o cérebro: há problemas quando se trata o ritmo como um elemento musical de estimulação física, a harmonia como um componente de estímulo mental e a melodia como um componente de estimulação espiritual (não era emocional?). Essa compartimentação dos elementos musicais esteve nas pesquisas de Helmholtz (1821-1894), que dava muita ênfase ao fenômeno físico-sonoro na elaboração do significado musical, resultando num obsoleto positivismo biológico. Já Hugo Riemann (1849-1919) afirmava que o sentido musical era dado por fatores históricos e sociais do sujeito, que suas respostas obedeciam estímulos externos de uma dada cultura, não reduzindo, assim, a relação homem-som a uma perspectiva naturalista. Ou seja, o ser humano não seria um sujeito passivo que reage como um autômato ao fenômeno sonoro.
Por outro lado, não se pode negligenciar a atuação do som musical sobre os sentidos, sendo esta uma perspectiva pertinente e que merece ser mais bem explorada – um bom livro sobre o assunto é Alucinações Musicais, do neurologista Oliver Sacks, o qual diz que ainda não é possível determinar até que ponto as reações de um indivíduo em relação à música dependem mais da própria fisiologia ou mais da cultura.
Leia aqui no blog o texto "As mensagens nada subliminares do rock".
Mas há alguns pontos abordados em palestras sobre música e religião que quero comentar nesse espaço. Estendendo tais pontos para além do simplismo habitual e da falta de acuidade histórica e musicológica, e ainda sem criticar especificamente fulano, sicrano ou mascherano, quero abrir o debate.
1) A música religiosa e secular dos negros nos EUA do século XIX: há palestrantes que ignoram o contexto histórico do surgimento do pentecostalismo e do desenvolvimento da música afro-americana.
Houve uma conversão em massa de negros ao protestantismo nos EUA do século XIX e início do XX enquanto uma outra leva de descendentes de escravos optou por atividades musicais seculares. Tal conversão era seguida de intensa segregação racial por parte da maioria protestante (eram os tempos imorais de separação oficial entre igrejas para brancos e igrejas para negros), o que deixou aqueles recém-conversos à margem do conhecimento litúrgico e doutrinário mais profundo. Assim, cada nova igreja abraçava o pentecostalismo e sua ênfase no êxtase emocional e espiritual, o que era muito mais próximo da cultura de transe das religiões de matriz africana. Nesse processo, o gospel e o spiritual podem ter sido separados do jazz e do blues no nascimento, mas se reencontrariam nos anos 1920 dentro das igrejas.
2) Músicos que fizeram pacto satânico: Daniel Spencer fala do mito do pacto demoníaco feito pelo músico Robert Johnson (um dos pais do blues). Há quem diga que essa história é uma criação de invejosos guitarristas da época e que se originou em um contexto místico-religioso específico (hoje, se alguém é um virtuose em seu instrumento ninguém dirá que o indivíduo fez um pacto com o diabo; seria negar a dedicação, o estudo diligente, a criatividade desenvolvida e a disposição motora natural). Seja como for, o bluesman Johnson também não negava a história (dizia-se que o violinista Nicolau Paganini tinha pacto com o demônio - por verdade ou por folclore, ele também não ‘abjurava’ o tal pacto).
3) Diferença entre o público pop e o público do período clássico-romântico: costuma-se diferenciar a recepção do público histérico dos Beatles do público tranqüilo que aplaudia Beethoven. Mas esquece-se que, também no século XIX, as divas da ópera eram ovacionadas com assobios e gritos, que o pianista e compositor Franz Liszt recebia cartas e propostas amorosas e lhe atiravam flores (y otras cositas más) em sua passagem, que Paganini até alimentava essa histeria, e que os Beatles, não suportando o assédio fanático do público e a gritaria dos shows, deixaram de fazer concertos públicos a partir de 1965.
4) Mensagens subliminares: há palestrantes que adoram assombrar o público com mensagens demoníacas escondidas na rotação reversa de um disco. A maioria dos exemplos de aúdio são seguidos de malabarismos de interpretação (se alguém não disser de antemão o que está sendo cantado não se adivinha uma palavra). Ora, a propaganda de valores anti-cristãos sempre esteve bem explícita nas letras, na indumentária e no comportamento de muito ídolos pop. Acertadamente, Daniel Spencer diz que este é um recurso dos anos 70 para promover os álbuns, mas que também dizia muito sobre a aproximação pessoal dos cantores com o misticismo. Em outro momento, Spencer afirma que o emprego das ‘mensagens subliminares’ na música é algo que já não merece nossa atenção (Ao final, indico artigo sobre mensagens diretas e nada subliminares na música).
5) O poder da música sobre o cérebro: há problemas quando se trata o ritmo como um elemento musical de estimulação física, a harmonia como um componente de estímulo mental e a melodia como um componente de estimulação espiritual (não era emocional?). Essa compartimentação dos elementos musicais esteve nas pesquisas de Helmholtz (1821-1894), que dava muita ênfase ao fenômeno físico-sonoro na elaboração do significado musical, resultando num obsoleto positivismo biológico. Já Hugo Riemann (1849-1919) afirmava que o sentido musical era dado por fatores históricos e sociais do sujeito, que suas respostas obedeciam estímulos externos de uma dada cultura, não reduzindo, assim, a relação homem-som a uma perspectiva naturalista. Ou seja, o ser humano não seria um sujeito passivo que reage como um autômato ao fenômeno sonoro.
Por outro lado, não se pode negligenciar a atuação do som musical sobre os sentidos, sendo esta uma perspectiva pertinente e que merece ser mais bem explorada – um bom livro sobre o assunto é Alucinações Musicais, do neurologista Oliver Sacks, o qual diz que ainda não é possível determinar até que ponto as reações de um indivíduo em relação à música dependem mais da própria fisiologia ou mais da cultura.
Leia aqui no blog o texto "As mensagens nada subliminares do rock".
Comentários
Reproduzo aqui as considerações que para vc deixei lá no DDP:
Sobre a questão da palestra sobre música, já ouvi o Levi Tavares (Musica e Adoração) e David Wesley (Coral Campinas) levantarem algumas questões junto ao próprio Daniel Spencer sobre pontos que podem ser melhorados e, segundo consta ele se demonstrou aberto a implementar tais alterações.
No entanto, penso que de qualquer forma, questões pontuais não alteram a preocupação de fundo, que me parece ser a forma extremamente rápida com que temos nos inclinado à música utilizada no meio pentecostal, já sabendo onde isso vai dar...
Fique à vontade para mandar suas observações para diarioprofecia@terra.com.br, a mim também interessa conhecer as possibilidades sobre as eventuais críticas, uma vez que este tema, INFELIZMENTE, tem se tornado uma pequena guerra dentro da igreja, o que, por si só, demonstra o perigo que está nos rondando.
Abraço e Deus te abençoe.
PS: Lendo seus posts reitero apenas que meu foco não está na discussão dos fatos do passado que podem ou não serem mais ou menos explorados em exercícios de retórica ou de alguma forma de condução dos menos versados (nos quais me incluo). A minha preocupação está no futuro, especialmente numa profecia extremamente específica que há de se cumprir, infelizmente mais uma vez, porque nós como povo temos insistido em andar na beira do abismo, como se pudéssemos lidar com os ardis de satanás, que de tanto ser desconsiderado, está entrando literalmente pelas portas dos fundos e, através de algo que ele conhece como ninguém, muito mais inclusive, penso (e desculpe a sinceridade, não tenho a intenção de ser descortez), do que pessoas que estudam o assunto com mais profundidade que a média da igreja.
Entre arriscarmos a montar uma "parafernália" necessária para que todos em todas as igrejas conheçam o suficiente de música para evitar o cumprimento da profecia (o que é uma utopia, tanto em uma ponta como na outra) e, desde já cortar o mal pela raiz para salvar alguns, ou confesso que sou tentado à segunda opção, até porque a primeira já tem se demonstrado fracassada.
Abraço irmão.
quando falei sobre escolaridade ou níveis intelectuais de maneira alguma me referi a você. ao contrário, pelo que já li você sabe equilibrar a linguagem para alcançar qualuqer escolarização.
eu estava me referindo com todas as letras a um tipo geral de palestrante a que as comunidades religiosas tem dado preferência, pois não podemos cair na vala do senso comum a despeito da força e da urgencia da mensagem.
a linguagem pode e deve ser comum, mas a abordagem não pode ser superficial.
reitero que não acho necessário que toda a comunidade seja portadora de todo o conhecimento musicológico (nem seria possível), mas que aqueles que palestram sobre música devem buscar referenciais mais profundos. por isso fiz a distinção entre o nobre uso que você fez da sociologia de durkheim com certa superficialidade de alguns palestrantes bem-intencionados que já ouvi.
abraços
Bem, quando eu utilizei o artigo onde se citava Durkheim, como certamente vc percebeu, o fiz em um sentido mais amplo que a questão da música. Esta última se circunscreve a apenas um aspecto das mazelas mundanas que têm atingido o adventismo do sétimo dia como povo e que, infelizmente, estão empurrando-o para a mais completa perda de identidade, penso.
É um sinal dos tempos em que vivemos, infelizmente.
Embora goste da linha argumentativa do Daniel Spencer, que se relaciona completamente com aquilo que realmente me interessa, profecia, sou bastante sincero em lhe dizer que aprofundamento periférico aos temas não me chamam a atenção.
Os dias em que vivemos, penso mais uma vez, exige um cristianismo prático e pragmático, de preparação e separação, se não quisermos ficar pelo caminho e, principalmente sermos pedra de tropeço para nossos irmãos.
Daí porque o tema música me interessa em sua simplicidade, como inclusive pode ser visto, se é que vc já não viu, em (http://diariodaprofecia.blogspot.com/2008/10/msica-e-os-eventos-finais.html).
Aliás vc acabou não abordando o que me parece mais importante neste qaudro todo: Nossa música caminha para o que já vemos no pentecostalismo? Temos ouvido em nosso meio algo como "jazz, rock e assemelhados", como proíbe nosso Manual da Igreja?
Abraço e Deus te abençoe.
pragmatismo na religião leva fácil, fácil a decisões apressadas e pouco fundamentadas, muitas vezes dentro de um clima instigado por pessoas que pensam de forma semelhante...
creio que a nossa irmã Helena estava muito mais interessada no fenômeno da carne santa e o uso da música por parte dele por este movimento do que somente a parte musical... muitas vezes separamos um fenômeno socio-religioso da outra parte que parece se aplicar com mais facilidade a nossa época...
pragmatismo religioso como qualquer outro pragmatismo (inclusive o filosófico) leva facilmente ao lema: o fim justifica os meios, pois muitas vezes a compreensão de certos assuntos é tão complexo que atrapalha o imediatismo de muitas pessoas, pois vivemos numa época em que as pessoas querem tudo para ontem... desta forma rapidamente assuntos importantíssimos são chamados de assuntos tangentes e são descondirados antes de qualquer consideração mais minuciosa...
me preocupo muito com esse tipo de postura...
forte abraço para vc, meu caro joêzer
shalom
mesmo reconhecendo a urgência e a essência do tema apresentado por alguns palestrantes na área da música e religião, se vamos abordar qualquer assunto que seja, mesmo sem interesse "acadêmico", devemos supor que a precisão histórica e a coerência musicológica estejam presentes (note que não me refiro especificamente a ninguém).
Imagine se, ao tratar de criacionismo, por exemplo, um palestrante apresentasse evidências não-comprovadas de sua teoria como já comprovadas. Ou um teólogo citasse trechos de escritores sem verificar a fonte corretamente. Por melhor que fosse sua intenção, os equívocos poderiam trazer descrédito à palestra, não concorda?
Os livros e filmes de minha preferência apenas confirmam meu interesse pela reflexão profunda e pelo pensamento maduro (mas há espaço na minha vida para o entretenimento rápido e indolor também).
Por último, conheço o contexto da palestra de daniel spencer e por essa razão é que escrevi esse artigo (além de ser a área de minha pesquisa na UNESP). há semanas entrei em contato direto com ele e apontei algumas ressalvas em sua palestra (e fiz os devidos elogios). Ele apreciou bastante as indicações que fiz; meu único interesse foi o de contribuir para o trabalho que ele desenvolve.
um abraço
Sua abordagem causa mais problemas do que resolve, a meu ver.
estou incluindo na minha lista de leitura.
Muito Obrigado Joêser!
Aliás, obrigado também pelos lúcidos comentários acerca do Spencer.
....
Quanto ao Spencer, gostei pacas, até admirei seus sermões. Tal falou muita besteira sobre a música, como sobre o "contra-tempo". Quanto a vida pessoal da maioria dos músicos citados por ele, pactos e tudo mais, desconheço; e também não acredito haver uma fonte segura para isso. E google certamente se encontrará de tudo, principalmente o que for sensacionalista.
Contudo, infeliz a comparação, dos expectadores de Beethoven e de um qualquer nos tempos modernos. Pois é totalmente diferente. NAqueles tempos música era coisa quase que exclusiva da Elite (qto mais Beethoven), nobreza tinha acesso... era algo expetacularmente de ambitos artisticos. No moderno já é diferente, o publico alvo é a massa populacional, a visão artistica mesmo, é posta de lado, substituido por um movimento cultural, e diga-se de passagem, pelas classes médias e baixas, de pouco intelecto nobre e artistico.
Não tem o que comparar, é totalmente diferente; inclusive o objetivo da música (para não dizer, a música... deveria ser uma outra palavra, tipo, música2)
Contudo, a visão de Hugo Riemann está incompleta e vaga. A parte subjetiva (e única) da música é o da capacidade da pessoa em compreendê-la. Assim como uma criança, que mal sabe ler, vai ser interessar apenas por quadrinhos, desenhos e poucas palavras; até atingir a maturidade, ser fluente em várias linguas e assim poder ler praticamente qualquer livro. E se eu com 17 anos não consegui compreender "Macunaima"... dá para ter uma idéia, das coisas.
em relação a Beethoven e cia., eles sempre trabalharam por encomendas (mas não apenas, claro), mas isso não é nenhum demérito se as peças forem boas esteticamente. A comparação que fiz foi estritamente no campo do comportamento do público e que algumas celebridades musicais dos séculos 18 e 19 também eram tratadas com intenso fanatismo.
A música pop também tem méritos artísticos, diferentes da música que chamamos erudita. O problema é que boa parte da música pop, por necessidade mercadológica, como você lembrou bem, prefere temáticas anti-cristãs e métodos sensacionalistas de divulgação.
abraço