Certo dia, sem mais nem menos, pessoas começam a ficar cegas. Submetidas à convivência forçada, elas experimentam não apenas as agruras da escuridão visual, mas passam a vivenciar a cegueira da razão e do amor, quando aumentam as disputas pelo poder e subtraem-se a tolerância e o senso de partilha. Este é o ponto de partida do livro Ensaio sobre a Cegueira, do português José Saramago (também filme de Fernando Meirelles).
Na história, apenas uma mulher conserva a visão, e é ela que servirá de guia para a turba de cegos; é ela que será vítima resignada, junto com as mulheres cegas, da torpeza moral masculina; é ela que terá a chance de retirar os cativos de uma espécie de caverna de Platão, dirigindo os outros e a si para a luz. Alguns destes perceberão que, mesmo quando eram capazes de ver, nunca souberam enxergar. Só agora, quando nada vêem é que, na verdade, podem realmente enxergar que são todos seres desgraçados e precisam uns dos outros e de alguém que conheça o caminho da luz.
Esta é uma parábola para qualquer tempo, pois há muito tempo que deixamos de ver (desde o primeiro homem e a primeira mulher); há muito que pensamos estar agarrando a verdade, quando estamos só tateando o mistério; há muito que pensamos estar à frente dos outros, quando andamos como cegos guiando cegos.
O apóstolo Paulo, quando ainda Saulo, foi repentinamente cegado. Ele não foi curado na cena seguinte. Ele precisava experimentar a cegueira para enxergar mais longe. Deixando de ver o mundo tátil, ele poderia verdadeiramente prestar atenção às coisas espirituais, ele poderia escutar a voz do Cristo a Quem perseguia. Um paradoxo completo: Saulo, vendo, perseguia cristãos e fazia mal ao evangelho; Paulo, cego, descobriu que sua missão era tornar-se um perseguido em nome do evangelho.
Este sublime paradoxo foi também vivenciado quando Jesus, após curar um cego de nascença (ver João, cap. 9), lhe disse: Eu vim a este mundo para juízo, a fim de que os que não veem vejam, e os que veem se tornem cegos. A roda dos escarnecedores fariseus perguntou a Cristo, então: Acaso também somos cegos?. E a resposta franca e definitiva de Jesus: Se fôsseis cegos, não teríeis pecado algum; mas, porque agora dizeis: Nós vemos, subsiste o vosso pecado.
Precisamos mudar o modo como vemos, é premente a necessidade de transformarmos o olhar. Nossa visão precisa ser tão vasta que caiba as lições do passado, tão penetrante que possa distinguir o melhor para nossa vida futura e tão amável que possa cativar nosso próximo. É preciso admitir a cegueira para que enxerguemos melhor. Somente quando cegos é que vemos nossa justiça de trapos, nossa intolerância mal-escondida, nosso desamor.
Uma história de Saramago pode ampliar o campo de compreensão para muita gente. Um filme tocante pode trazer à tona reflexões que insistimos em adiar. Mas para vê-los necessita-se de olhos abertos. O cristianismo requer olhos abertos, mas requer um recuo aparente que é, de fato, uma marcha adiante. Ser cristão é pedir a cota diária de luz: pedir a Deus que Ele nos abra os olhos é pedir que Ele nos tire da cegueira espiritual. Assim, poderemos entender qual é a vontade do Pai e enxergar nosso semelhante como alguém não mais cego que nós e não menos merecedor da graça que qualquer ser humano. Então, um dia, poderemos dizer como os discípulos: Nós vimos a Sua glória.
Ilustração: A cura do cego de Jericó, de Nicholas Poussin (óleo em tela, 1650)
Comentários
Um desses momentos, infelizmente não aproveitado no filme (aliás, algumas das passagens mais marcantes do romance não foram contempladas no filme e, talvez por isso, este não nos atinja com o impacto daquele), é um diálogo entre a mulher do médico, a única que vê, e a "rapariga de óculos escuros", ocorrido no apartamento da última (na peculiar grafia de Saramago, é a maiúscula, e não o tradicional travessão, que indica que fala uma nova voz, sendo que a primeira é a da rapariga):
“Escuta, tu sabes muito mais do que eu... mas o que penso é que já estamos mortos, estamos cegos porque estamos mortos, ou então, se preferes que diga isto doutra maneira, estamos mortos porque estamos cegos, dá no mesmo, Eu continuo a ver, Felizmente para o teu marido, para mim, para os outros, mas não sabes se continuarás a ver... Hoje é hoje, amanhã será amanhã, é hoje que tenho a responsabilidade, não amanhã... Responsabilidade de quê, A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam...”
Ensaio Sobre a Cegueira, p. 241
"A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam" é lançada sobre os ombros daquela que continua a ver (de todo aquele que vê) - e é uma responsabilidade que pesa muito (“Se tu pudesses ver o que eu sou obrigada a ver, quererias estar cego...”, p. 115, ela diz num momento), mas que precisa ser carregada a todo custo. Ao considerar isso, não consigo deixar de pensar nas famosas palavras de Cristo em Mateus 5:14-16 ("Vós sois a luz do mundo...").
Nesse sentido, a epígrafe do romance é lapidar:
"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara."
Se a luz do evangelho nos permite olhar, que possamos ir além e ver; e se vemos, que possamos ir além e reparar (verbo que carrega o notável duplo sentido de "contemplar, atentar para" e de "consertar").