Há 40 anos, a humanidade, representada por três navegantes, chegava à Lua da mesma forma que o europeu chegava à América. No lugar das caravelas Pinta, Ninã e Santa Maria, agora a nave espacial Apollo 11. Sai Colombo e entra Neil Armstrong, em vez do império ibérico, o império norte-americano. As testemunhas não eram mais os índios nativos, mas o embasbacamento de milhares de espectadores diante da transmissão ao vivo pela TV era semelhante. A carta de intenções também era igual: no século XV, a Espanha precisava aumentar o mercado e vencer a concorrência; no século XX, os Estados Unidos necessitavam vencer a concorrência e aumentar o mercado. Venceu a concorrência soviética de tal forma que até o mero termo "soviético" caiu em total desuso.
Eu sonhava com a lua. Não como os poetas sonhavam - ainda há poetas que sonham com a lua? Minha lua era a do livrinho infantil que contava como na Lua tudo era pelo avesso. Inclusive os letreiros que anunciavam SETEVROS geladinhos. Depois, minha lua passou a ser como a de Jules Verne, pronta para ser colonizada, civilizada.
Há muito tempo, antes mesmo do Photoshop, o homem foi à lua plantar imagens que provassem sua indomável conquista. É que andam contestando a aventura mais incrível do ser humano. Eu não duvido da fábrica de ilusões globalizadas, que seria perfeitamente capaz de encenar o passeio de dois homens no solo lunar. O maquinário da NASA já dava conta mesmo de fazer uma alunissagem? E quanto à transmissão pela TV em tempo real, inclusive com diálogos entre os astronautas e a estação na Terra? E as pegadas na Lua, e o vento na bandeirola, e a penumbra, e as sombras em direções diferentes? E como a NASA perde os filmes originais do seu feito mais notável? E chega. Tudo é possível ao que crê e também ao que não crê.
Não gosto nem costumo acreditar em teorias conspiratórias. Mas que las hay, las hay. Mas o pior nessa história toda (mal-contada?) é a foto da bandeirola na Lua. O Neil Armstrong me decora aquela frase feita ("um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade") e depois crava a bandeira estadunidense. Não era a humanidade, ô cara pálida? Sim, mas é que os EUA representavam a gente. Entendido, sir, yes, sir.
Já que tomaram a Lua dos poetas, dos lobos e dos sonhos, então prefiro voltar ao poema de Carlos Drummond de Andrade, "O homem; suas viagens". É um dos poucos poemas que ainda sei de cor. Lua, planetas, espaço sideral, ir audaciosamente aonde ninguém chegou? Há ainda uma viagem mais difícil que o homem tem se negado a fazer.
O homem; suas viagens
O homem, bicho da terra tão pequeno
Chateia-se na terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza a lua.
Lua humanizada: tão igual à terra.
O homem chateia-se na lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
Pisa em marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza Marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
Vê o visto — é isto?
Idem
Idem
Idem.
O homem funde a cuca se não for a Júpiter
Proclamar justiça junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira terra-a-terra.
O homem chega ao sol ou dá uma volta
Só para tever?
Não-vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o sol, falso touro
Espanhol domado.
Restam outros sistemas fora
Do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem (estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De con-viver.
Comentários
Lembrei-me de uma pregação q ouvi sobre a tentativa do homem de esconder, figurativamente, a nudez atrás de roupas, como Adão e Eva o fizeram.
Zygmunt Baumann é um dos poucos filósofos na atualidade q ainda ousa falar de coisas tão simples, embora imprescindíveis q negligenciamos - trabalho dito despretencioso de poetas como Drummond - como a necessidade de voltarmo-nos pra nós mesmos, "raça humana". Em vez disso, o q temos feito é evitarmo-nos e redirecionarmos a atenção pra outras coisas. A ciência e a tecnologia, como exemplo, q fazem todos se perguntarem onde nos vai levar tanto avanço.
também tenho admiração pelo bauman.
Li o trecho em que se passa a observação do letreiro que diz "setevros". Sorvete ao contrário... Me encantei com tal experiência que tive . Passei a vida toda procurando onde tinha lido. Agora sei !!!! Tudo me remete àquele momento! Que fascínio!!!