Em vez de converter-se com o tempo em um senhor centenário respeitável, o futebol está na verdade perdendo os últimos fios brancos de respeito e dignidade que ainda tinha. O último escândalo veio a ter lugar logo na civilizada Paris; e o relato que se segue ruborizaria até as damas suspeitas de suspeitas esquinas parisienses. O que lhes passo a contar envergonha a peruca de Voltaire e a calvície de Bonaparte, mas a verdade tem que ser dita ainda que tentem abafá-la tocando a Marselhesa em dez mil alto-falantes.
Conto-vos, pois: a aguerrida disputa entre França e Irlanda para garantir uma vaga na Copa de 2010 na África do Sul estava empatada em pleno Stade de France, onde onze anos atrás a seleção francesa tinha conquistado a Copa pela primeira vez na sua história.
Se essas duas nações quisessem mesmo demonstrar que vieram do berço da civilização ocidental, esses países convocariam seus homens para batalhas em outras arenas que não o simplório campo de futebol. O embate poderia usar armas letais como a leitura e explanação da obra Ulisses, do dublinense James Joyce, ou então obrigar o inimigo irlandês a assistir uma mesa-redonda sobre o Ser e o Nada.
A querela futebolística se resolve sem maiores intelectualidades, mas não sem a vontade dos gauleses de mandar os irlandeses de volta para os pubs da Grã-Bretanha. Os irlandeses, terra das altercações costumeiras entre católicos e protestantes, querem liquidar a França ateia. Atentai bem, que essa questão da religião ainda volta a aparecer por aqui.
Sendo que o empate em 1x1 não fede nem cheira à queijo Camembert, segue-se a peleja na prorrogação. É então que o jocoso Henry, atacante de bons pés e muita máscara que já tinha eliminado o Brasil em outro certame mundial, recebe uma bola em profundidade. Mas esta se lhe escapa do domínio lícito e, mais rápido do que alguém possa dizer “Athos, Porthos e Aramis”, o jogador dá um toque na bola com o braço, outra ajeitadinha com a mão e passa (com o pé, enfim) a bola para um companheiro marcar o gol da vitória e da classificação da França.
A jogada de Henry foi tão irregular que em qualquer outro esporte com bola seria ilegal também. No vôlei, seria marcado dois toques; no basquete, condução.
Com um tapinha indolor, Henry derruba o espírito olímpico do Barão de Coubertin e os ideais de fraternidade esportiva de Jules Rimet. Num ato impensado, a mão boba de Henry faz cair o pano envergonhado da Deusa da Razão.
Mas, peraí, e os jogadores irlandeses não reagem, não fazem parar a partida, não catimbam até que o Bono Vox sopre no ouvido do quarto árbitro que o gol foi ilegal, que a regra é clara, que nem uma legião de Carla Brunis pode fazer um irlandês aceitar esse engodo?
Qual o quê! Os irlandeses são um povo culto demais para um estardalhaço do tipo. Reclamam baixinho, correm atrás do árbitro, mas não insistem muito, não. É isso que dá ter uma população com altíssimo índice de leitura anual per capita. Fossem os jogadores brasileiros que se sentissem roubados na mão grande e duvido que nossos guerreiros com o ensino fundamental incompleto e meio livro lido do Paulo Coelho desistissem tão facilmente. Na hora de reclamar no futebol, verás que um filho teu não foge à luta!
Para Henry, se Deus não existe, então tudo é permitido, inclusive gol de mão e citação fora do contexto. Mas se fosse a Irlanda que tivesse marcado um gol ilegalmente, pode ter certeza, leitor mon ami, que o próprio Zidane desceria da tribuna e daria uma cabeçada no juiz.
As pessoas têm levado o futebol muito a sério. Daí as animosidades entre torcidas, daí a satisfação de ganhar mesmo com um gol de mão, daí que a França segura na mão do Henry e vai à Copa. Mas se existiu um momento para inserir a tecnologia do simples replay para diminuir as injustiças e punir os mandriões da bola, o momento é esse.
No entanto, desde que Maradona fez um gol ilegal com a mão na Copa do México de 1986 e matreiramente atribuiu o tento à “mão de Deus”, resta aos craques e também aos pernas-de-pau o cada vez mais cotidiano expediente de usar a santa mão de Deus em vão.
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