Quando o compositor Jader Santos promoveu a mudança de maior impacto na história do quarteto Arautos do Rei com o CD “Eu não sou mais eu”, talvez não imaginasse que este histórico grupo vocal masculino, para manter-se na altitude musical a que o próprio compositor o conduziu, teria que aparentemente recuar na linha evolutiva da música adventista no Brasil.
Como explicar, então, o suposto passo atrás que teriam dado com o CD “Aqui é seu lugar”? O líder musical não é o jovem Silmar Correia? Os integrantes não são os mais jovens da história do grupo?
Porém, o que parece um recuo ao tradicionalismo e ao museu obsoleto da hinologia protestante, na verdade, é um dos maiores saltos de qualidade dados pela música cristã brasileira.
A “revolução sem grito” de Silmar e Evaldo Vicente oferece sutilezas só perceptíveis em audições sucessivas. A mudança não está em primeiro plano, como geralmente se nota em alguns CDs que buscam a modernização de repertório a qualquer custo.
A sequência de músicas segue uma coerência temática ou narrativa. “Aqui é seu lugar” é o convite manso e gentil; a música “Foi por mim” relembra o significado da cruz do Calvário a “mim”, mas não exclui o “foi por ti”; depois vem “Portas abertas”, saindo do Gólgota para a igreja moderna, que deve ser um lugar de aconchego e promessa confortadora. Afinal, ali é o “seu lugar” já mencionado.
Paz é a palavra-chave do planeta para o 3º milênio. E a canção ‘Paz’ responde ao apelo atual com cinco certezas muito necessárias ao cristão: a volta de Jesus (paz é a certeza de que Cristo irá voltar); a vida eterna (paz é a segurança de que o céu é nosso lar); a validade do sacrifício vicário de Cristo na cruz (paz é ter na cruz os pecados perdoados); Cristo ressuscitado conosco (paz é ter Jesus caminhando ao nosso lado); e, acesso ao Senhor da Paz (paz é Jesus). Na era da insônia e da depressão, essa canção também rememora as Escrituras (‘Em paz me deito e logo pego no sono, porque Tu, Senhor, estás comigo’) no verso moderno de Valdecir Lima (essa paz restaura o sono e afasta a ansiedade).
Assim, como as portas foram abertas para mostrar o senso de pertencimento a um lugar, para ressaltar o sentido da cruz e para apontar a saída de paz para o homem, vem então o convite ao louvor na música seguinte: “Salmo 103”. A letra assegura que o louvor não é um ato de petição, mas uma resposta aos atos salvadores de Deus.
O letrista (Valdecir Lima) também substitui o eu-lírico, o narrador em 1ª pessoa, pelo “nós”. Ou seja, os feitos de Deus são direcionados ao indivíduo singular, porém a adoração e o louvor partem de uma coletividade plural beneficiária das ações divinas.
Muitas vezes, o papel da lei e da graça na vida cristã não é imediatamente compreendido. As faixas 7 (“A Tua Lei’), e 8 (“Graça”), valorizam tanto a lei quanto a graça, num equilíbrio bem significativo.
Desde Hamurábi, desde os Dez Mandamentos, o contrato social firmado nas constituições, nos códigos e nas leis costuma ser fixado, digamos, em material não-perecível. Visto que a cultura oral pode ser vítima de adições e subtrações legislativas elaboradas segundo a memória curta de cada geração, passou-se à cultura letrada a fim de se perenizar a regulamentação das condutas humanas. Não que a forma rígida (pedra, papel ou CD-ROM) seja capaz de evitar a alteração das regras, mas que seja pelo menos aplicativa enquanto dure.
Assim, a lei de Deus continua a mesma. Contudo, os homens foram subtraindo partes e adicionando contrapartes ao sabor de suas tradições inventadas. A canção “A Tua lei” não vê a lei de Deus como algo ultrapassado ou um fardo pesado. Ao contrário, enxerga a lei como: a mais bela expressão do Teu coração/É Teu próprio caráter; reflete a grandeza e a Tua beleza; perfeita, como Tu és perfeito; tem a verdade e os princípios do amor. A canção usa a própria Bíblia (a cultura letrada) para a afirmação de amor à lei (os salmos 19: 7,8; e 119: 1, 16, 47, 105, 151).
Se os autores de “A Tua Lei” têm a palavra bíblica como fonte da exaltação da lei divina, Daniel Salles, o jovem compositor de “Graça” se serve da experiência humana para exaltar a graça divina.
“A Tua lei” tem rica orquestração de cordas – mais uma tapeçaria orquestral tecida por Ronnye Dias. Por sua vez, “Graça” usa os vocais fortíssimos e as notas mais agudas no refrão e faz uma citação instrumental do hino “Graça Excelsa (Amazing Grace)”.
Esse é um CD que tem muita substância para estudos mais meticulosos, e um blog como este não dá conta, mesmo alongando-se e contando com a boa vontade do leitor. Por isso, obrigado, porque até aqui o Senhor lhe deu paciência para ler estas mal traçadas.
Mas não posso deixar de comentar a música “Eu quero olhar”, de Jader Santos. Leia aqui.
Comentários
passos/lábios; Senhor/louvor; Lei/esquecerei/estarei/ expressão/coração; grandeza/beleza; Senhor/amor etc. Além disso, embora admire o rigor da letra de "A Tua Lei", penso que os versos de "Graça" - fruto da pena de Daniel Salles, possivelmente o jovem compositor adventista mais importante na atualidade (basta ver a freqüência com a qual o seu nome aparece no encarte dos álbuns recentes de nomes bastante conhecidos: Arautos, Novo Tom, Iveline, Coral Unasp, Társis, Leonardo Gonçalves...) - possuem mais frescor e ousadia (questão de gosto literário, admito). Espero que possa continuar a desfrutar da leitura de comentários capazes de enriquecer nossa experiência auditiva, como são os seus. Fique com Deus e até mais.