Uma das frases mais conhecidas nas igrejas diz que o cristão “ESTÁ no mundo, mas não É do mundo”. O que para os críticos soa como esquizofrenia – o cristão seria alguém que vive numa quinta dimensão ou num mundo paralelo – e para alguns teóricos é uma anomalia – o que é isso que chamam de “mundo”, perguntam –, para os cristãos é uma convicção simples.
“Mundo” não é entendido como local físico de habitação, onde eu leio jornal, assisto televisão e converso com o vizinho. “Mundo” são as práticas anti-cristãs da sociedade. Essa dicotomia separa o mundo que se degrada moralmente do restaurador reino de Deus. O que intelectuais conseguem complicar as mentes mais simples distinguem claramente. Enquanto os pensadores não entendem ou fingem não entender esse paradoxo, os cristãos fazem essa clivagem sem perplexidades. Ou pelo menos faziam.
O que tem causado certo espanto no meio evangélico é a passagem de artistas gospel por dois mundos: o secular e o cristão. Em 2008, o grupo Artpella foi o vencedor de uma das finais do programa Astros, do SBT. Por sua vez, a cantora evangélica Soraya Moraes, além de receber prêmios nas categorias gospel, ganhou o Grammy Latino de “Melhor Canção Brasileira”, concorrendo com Vanessa da Matta & Sérgio Mendes, Jorge Vercilo e Djavan.
No caso do Artpella, questionou-se a presença de um grupo adventista num programa de competição musical secular. De Soraya Moraes, levantou-se dúvidas sobre a integridade da premiação.
Os defensores do Artpella argumentam que o triunfo do grupo representa um aumento da visibilidade social da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), reconhecida pelo trabalho hospitalar e educacional, mas sem maior penetração midiática (a IASD ainda é uma das poucas igrejas protestantes históricas ou tradicionais que mantém constante crescimento).
Circulam dois vídeos do Artpella no programa Astros. No primeiro, salta aos olhos o quanto os jurados do programa parecem tocados. Tocados artisticamente (espiritualmente, só eles poderão dizer). O próprio Carlos Eduardo Miranda, produtor musical tarimbado e o mais debochado da banca, não se conteve e disse que pediria “o grupo emprestado a Deus” para a música pop, diante da qualidade do que ouviu. E ele conhece bem o nível da atual safra musical pop brasileira.
Voltando aos vídeos do Artpella, é nítida a mudança entre eles. Se no primeiro vídeo eles cantam uma música calma, de letra e harmonia vocal até comuns, no segundo, quando são declarados vencedores, o grupo parece outro. A transformação visual, talvez obra das mãos dos produtores do programa, segue o figurino de astros da black music americana. A indumentária do primeiro vídeo é mais natural e despojada. No segundo, eles estão produzidos e uniformizados como se fossem um grupo fabricado pelo departamento de marketing de gravadoras (lembrando que a natureza do programa é descobrir talentos e, a seguir, moldá-los segundo fórmulas fáceis do mercadão musical).
A submissão a estereótipos atinge também a música que cantaram. O ambiente não favorece a alegria ou animação da música, a qual parece apenas feita pra pular “em nome de Jesus”. Os jurados põem os pés sobre a mesa, a postura do público é de claque induzida à falsa histeria, ficou soando um tanto artificial. Perguntas que eu faria aos irmãos do Astros: O que ficou, então? A primeira ou a última impressão?
Já o triunfo de Soraya Moraes (foto) no Grammy Latino – a cantora ganhou os troféus de Álbum de Música Cristã tanto em Língua Espanhola (com “Tengo sed de Ti”) quanto em Língua Portuguesa (com “Som da Chuva”), e de Canção Brasileira (por “Som da Chuva”) - tem a ver com a forma de votação da premiação, restrita aos membros da Academia Latina de Gravação (LARAS, na sigla em inglês).
Segundo reportagem de O Globo (30/11), nos últimos anos, muitos artistas e produtores brasileiros de música evangélica se inscreveram na Laras, conseguindo assim não só uma categoria própria (Álbum de Música Cristã em Língua Portuguesa) como peso de voto para emplacar agora uma indicada (e vencedora) na de Canção Brasileira, que, nas edições anteriores do prêmio, era exclusiva de artistas da MPB.
E assim, voltamos a dicotomia sacro x secular. Os evangélicos se propõem a participar de competições musicais com a música que fazem. Essa participação revela um duplo sentido: o proselitismo cristão – o conteúdo de sua música divulga mensagens de sua fé; a auto-afirmação social – a forma de sua música nivela-se aos estilos musicais em voga e o cristão não é mais considerado um estranho sectário.
Perguntas que eu faria aos irmãos do Grammy: qual a validade de um prêmio quando ele está vinculado aos interesses corporativistas de músicos evangélicos? O fato de ser cristão impede que se reconheça a qualidade artística de músicos não-convertidos?
A resposta da própria Soraya Moraes, também pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular em Alphaville (SP), explica: “O grande diferencial da música cristã e gospel é a letra, inspirada por Deus”. Logo, a concorrência é automaticamente eliminada.
Cada geração comunicará sua fé religiosa por meio das expressões culturais relevantes em sua época, em geral, emprestadas da sociedade secular e cristianizadas ou sacralizadas. Porém, quando as estratégias de promoção do cristianismo geram submissão à indiferenciação de estilo ou produzem corporativismo e partidarização, é de se pensar se essa busca por aceitação e respeitabilidade não borra os traços de distinção e passa a imitar aquilo que chamam de “mundo”.
artpella - vídeo 1
artpella - vídeo 2
soraya moraes - som da chuva
“Mundo” não é entendido como local físico de habitação, onde eu leio jornal, assisto televisão e converso com o vizinho. “Mundo” são as práticas anti-cristãs da sociedade. Essa dicotomia separa o mundo que se degrada moralmente do restaurador reino de Deus. O que intelectuais conseguem complicar as mentes mais simples distinguem claramente. Enquanto os pensadores não entendem ou fingem não entender esse paradoxo, os cristãos fazem essa clivagem sem perplexidades. Ou pelo menos faziam.
O que tem causado certo espanto no meio evangélico é a passagem de artistas gospel por dois mundos: o secular e o cristão. Em 2008, o grupo Artpella foi o vencedor de uma das finais do programa Astros, do SBT. Por sua vez, a cantora evangélica Soraya Moraes, além de receber prêmios nas categorias gospel, ganhou o Grammy Latino de “Melhor Canção Brasileira”, concorrendo com Vanessa da Matta & Sérgio Mendes, Jorge Vercilo e Djavan.
No caso do Artpella, questionou-se a presença de um grupo adventista num programa de competição musical secular. De Soraya Moraes, levantou-se dúvidas sobre a integridade da premiação.
Os defensores do Artpella argumentam que o triunfo do grupo representa um aumento da visibilidade social da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), reconhecida pelo trabalho hospitalar e educacional, mas sem maior penetração midiática (a IASD ainda é uma das poucas igrejas protestantes históricas ou tradicionais que mantém constante crescimento).
Circulam dois vídeos do Artpella no programa Astros. No primeiro, salta aos olhos o quanto os jurados do programa parecem tocados. Tocados artisticamente (espiritualmente, só eles poderão dizer). O próprio Carlos Eduardo Miranda, produtor musical tarimbado e o mais debochado da banca, não se conteve e disse que pediria “o grupo emprestado a Deus” para a música pop, diante da qualidade do que ouviu. E ele conhece bem o nível da atual safra musical pop brasileira.
Voltando aos vídeos do Artpella, é nítida a mudança entre eles. Se no primeiro vídeo eles cantam uma música calma, de letra e harmonia vocal até comuns, no segundo, quando são declarados vencedores, o grupo parece outro. A transformação visual, talvez obra das mãos dos produtores do programa, segue o figurino de astros da black music americana. A indumentária do primeiro vídeo é mais natural e despojada. No segundo, eles estão produzidos e uniformizados como se fossem um grupo fabricado pelo departamento de marketing de gravadoras (lembrando que a natureza do programa é descobrir talentos e, a seguir, moldá-los segundo fórmulas fáceis do mercadão musical).
A submissão a estereótipos atinge também a música que cantaram. O ambiente não favorece a alegria ou animação da música, a qual parece apenas feita pra pular “em nome de Jesus”. Os jurados põem os pés sobre a mesa, a postura do público é de claque induzida à falsa histeria, ficou soando um tanto artificial. Perguntas que eu faria aos irmãos do Astros: O que ficou, então? A primeira ou a última impressão?
Já o triunfo de Soraya Moraes (foto) no Grammy Latino – a cantora ganhou os troféus de Álbum de Música Cristã tanto em Língua Espanhola (com “Tengo sed de Ti”) quanto em Língua Portuguesa (com “Som da Chuva”), e de Canção Brasileira (por “Som da Chuva”) - tem a ver com a forma de votação da premiação, restrita aos membros da Academia Latina de Gravação (LARAS, na sigla em inglês).
Segundo reportagem de O Globo (30/11), nos últimos anos, muitos artistas e produtores brasileiros de música evangélica se inscreveram na Laras, conseguindo assim não só uma categoria própria (Álbum de Música Cristã em Língua Portuguesa) como peso de voto para emplacar agora uma indicada (e vencedora) na de Canção Brasileira, que, nas edições anteriores do prêmio, era exclusiva de artistas da MPB.
E assim, voltamos a dicotomia sacro x secular. Os evangélicos se propõem a participar de competições musicais com a música que fazem. Essa participação revela um duplo sentido: o proselitismo cristão – o conteúdo de sua música divulga mensagens de sua fé; a auto-afirmação social – a forma de sua música nivela-se aos estilos musicais em voga e o cristão não é mais considerado um estranho sectário.
Perguntas que eu faria aos irmãos do Grammy: qual a validade de um prêmio quando ele está vinculado aos interesses corporativistas de músicos evangélicos? O fato de ser cristão impede que se reconheça a qualidade artística de músicos não-convertidos?
A resposta da própria Soraya Moraes, também pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular em Alphaville (SP), explica: “O grande diferencial da música cristã e gospel é a letra, inspirada por Deus”. Logo, a concorrência é automaticamente eliminada.
Cada geração comunicará sua fé religiosa por meio das expressões culturais relevantes em sua época, em geral, emprestadas da sociedade secular e cristianizadas ou sacralizadas. Porém, quando as estratégias de promoção do cristianismo geram submissão à indiferenciação de estilo ou produzem corporativismo e partidarização, é de se pensar se essa busca por aceitação e respeitabilidade não borra os traços de distinção e passa a imitar aquilo que chamam de “mundo”.
artpella - vídeo 1
artpella - vídeo 2
soraya moraes - som da chuva
Comentários
Uma das maiores dificuldades que eu e meus amigos temos é a atração com musicas e ritmos seculares. São coisas boas, a musica é atraente, mas a mistura do SANTO com o PROFANO é uma coisa que me incomoda.
Sempre pensei que uma coisa é cantar uma musica do mundo, estou me misturando com ela, me sujando com ela. Outra coisa é misturar as coisas de Deus com as coisas do mundo, não estaria sujando só amim mas as coisas de Deus. Isso não é certo.
Nesse aspecto especifico do grupo ARTPELLA é complicado mencionar, pois eles não estão trazendo "novidades" para dentro da casa de Deus, eles estão levando. Pena que o mundo não quer ver.
Não sei qual o limite, mas é um ponto bom para argumentação. Que eu tenho certeza, o proprio grupo também deve estar se questionando.
é possível admirar a música secular? sim, e até o ponto em que ela não é um obstáculo para uma íntima comunhão com Deus.
é possível usar ritmos seculares com letras religiosas?
sim, isso sempre se fez. o problema está em saber qual é o ponto adequado e o lugar apropriado para agir desse modo.
Acho que pra cantar músicas seculares não há problema algum, claro que por ser outro terreno, acredito deve-se dar uma certa atenção a letra da música, para não se promover músicas que desrespeitem as nossas origens. Mas músicas belas, foram e ainda hoje são compostas em vários ritmos e sobre vários temas.
Equilíbrio e temperança (do ponto de vista de quem vê, é claro!).
acabei de ler o seu post e ele está repleto de assuntos para polêmica...
depois de ler ouvi o Artpella (1 & 2) e a Soraya...
eu simplesmente não acredito que essa turma ainda não despertou para a música de qualidade que se faz no meio gospel... se escutassem o último álbum do Novotom acho que iriam pirar!
Creio que a submissão visual do Artpella na segunda apresentação possa ter vários fatores, fatores que eu não tenho condições de imaginar, mas que também deve ter algo a ver com a pouca experiência para poder exigir que se respeite a identidade visual... sei lá... prefiro pensar assim
Agora a Soraya ganhar nessas categorias do Grammy mostra que o que movimenta o mundo das gravações hoje em dia é a música gospel, sofrendo um pouco menos com a pirataria, etc. É algo, a meu ver, vergonhoso e ridículo, pois até uma pessoa pouco conhecedora de música compreende que essa musiqueta não chega nem próximo à qualidade artística dos concorrentes...
creio que um artista cristão possa participar desse tipo de competição, mas ganhando por méritos artísticos e assim também, ao mesmo tempo, levando a mensagem, sem, no entanto, expor que a música dita 'gospel' também usa dos mesmos meios ínfames que todo o comércio musical secular usa...
e tenho dito... :)
shalom
o absurdo resultado do grammy latino me leva a pensar que as estratégias agressivas de parte do meio gospel ofendem muitos(?) fiéis enquanto sua ínfima qualidade musical não alcança os músicos seculares.
penso que o alvo está correto, mas os intrumentos e o manejo para atingí-lo conspiram contra o objetivo.
Pessoal de fora da igreja nem mesmo sabe que novo tom existe. Apesar de nós conhecermos tão bem, e pela nossa opinião ser muito melhor que o ART'a'PELLA, não passa da nossa casa pra chegar ao nosso vizinho...
Primeiro gostaria de parabenizar a pessoa que fez esse artigo. Temas como esses precisam mesmo ser levantados.
Eu só queria dizer que a produção feita para a segunda apresentação no ASTROS foi toda ela realizada pelo Artpella, com recursos do Artpella. Não há nenhum papel do SBT ai, nem sequer um real. Nossa estratégia foi evoluir na questão visual, pois sabiamos que levavamos vantagem na questão técnica com relação a outros concorrentes, mas sem uma imagem condizente, não alcançariamos a vitória. E da forma como estavamos antes, visualmente falando, corriamos o risco de não vencer. Eu não acreditava, mas o programa ASTROS do SBT é realmente algo sério. Investimos o dinheiro do carro ganho e vendido no lançamento do nosso primeiro CD que no final desse semestre estará nas lojas se Deus quiser.
Paz,
D'Groove - Artpella
Acho que na primeira apresentação estão com um visual mto sem graça (perdoem a franqueza) o que foi corrigida na segunda apresentação, maravilha. Em termos de qualidade musical, não tem o que falar embora eu não concorde com "músicas inspiradas por Deus" e nem goste do estilo.
Mas caso ainda se preocupe com sacro X secular no ramo musical, não esquenta, só espera 20 anos mais ou menos e já deixa de ser "mundano". Afinal, todos os estilos antes criticados pelos cristãos há 10,20 anos atrás eles fazem hoje no gospel, até mesmo heavy metal, e pasmem vi outro dia "black metal cristão".
;)
Engraçado não?
sobre o conflito sacro x profano na música de todos os tempos, em caso de não ter lido, escrevi em dezembro o seguinte artigo 'música sacra através dos tempos'.
está nesse link:
http://notanapauta.blogspot.com/2008/12/msica-sacra-atravs-dos-tempos.html
abs
Gostaria de saber, se pode me passar o seu email, pois gostaria de enviar um questionário com algumas perguntas sobre o rap gospel, seria possível este favor?
Estou trabalhando em uma pesquisa sobre o assunto, poderia contar com a sua opinião?
Meu nome é Flávio dias
Email: flaviodaval@hotmail.com
Abraços!
Flavio