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veste a camisa, kaká

Num dia ele rejeita uma proposta financeira indecente para jogar na Inglaterra e recebe o afeto que se encerra no peito juvenil do torcedor do Milan. Noutro dia ele já é o novo ídolo dos torcedores do Real Madrid. O que aconteceu? Kaká não foi para a Inglaterra porque a proposta vinha do glorioso Manchester City, time que tirou Robinho das vistosas confusões madrilenas e o lançou a dois passos da obscuridade. Não era o dinheiro, meus caros. O obstáculo era o timeco inglês sem chances de estrelato. O galático Real acaba sendo bom pra todo mundo: tira o time milanês de Silvio Berlusconi do buraco das dívidas, dá a Kaká a chance de mudar de ares e voltar a ser o melhor do mundo e ajuda o clube espanhol a atrair patrocínio, vender camisas e faturar com amistosos na Ásia.

Num dia ele se reserva o direito de não expor a vida privada no ralo público no noticiário das fofocas. Noutro dia estampa-se o primeiro aniversário do filhote debutando nas páginas das revistas de salão. O que aconteceu? Kaká se tornou um Narciso que acha feio o que não é capa da CARAS? Menos, menos. Entreouvia-se nas filas de banco que o craque já estava passando da conta em sua carolice, e a sede de polêmica precisa de falas bombásticas e não daquelas entrevistas coerentes ao Galvão Bueno, precisa de poses cheias de amor pra dar e não daquele rosto sereno de quem acabou de sair do comercial de lâmina de barbear, exige machões insaciáveis e não daquele ar de marido bem-resolvido.

Bem, o genro-da-mamãe é brasileiro sem ser brahmeiro, não pilota carrões a 190 km/h e acredita que sexo e intimidade são tão importantes que merecem ser entregues apenas durante o compromisso firmado do casamento feliz. É muito pouco pra mídia marrom. Mas, para satisfação quase geral, pelo menos ele abre as portas do aniversário do filhinho para a mundanidade frívola e desejável de certas revistas. Todos ganham: o público fica momentaneamente saciado, os programas sobre celebridades têm assunto pra uma semana e Kaká não fica tão distante do mundo dos flashes invasores de privacidade.

A última crítica ao jogador é que ele anda exibindo sua fé aos quatro cantos globalizados. Sua camiseta com a inscrição "I belong to Jesus" (eu pertenço a Jesus), vestida por baixo do uniforme da equipe que estiver defendendo, aparece sempre após uma conquista. Ainda no campo, ele desfila sua crença. Kaká evangelista? Vamos a outros fatos correlatos.
A Marcha Pra Jesus é um evento da Igreja Renascer que tomou proporções ecumênicas. Megashows, megartistas, megapúblico, megabispos presos nos EUA, esse evento anual é, mais que uma celebração religiosa, um ato de afirmação social. Não basta se dizer de Cristo, é preciso dizer olhem como os de Cristo somos muitos. Kaká é presença garantida nos palcos da festa, cuja atuação parece tão tímida quanto a matéria do Jornal Nacional sobre o evento. Pôxa vida, Kaká! Até o casal Hernandes fica mais à vontade falando da prisão domiciliar na Flórida!
Kaká, em suas entrevistas, é comedido, e não parece alguém em transe místico quando fala na TV. Se ele fosse como um dos artistas gospel de vendas milionárias e discos premiados, talvez ele falasse assim: "Pois é, Galvão. Aquele passe que eu dei pro Luis Fabiano foi uma iluminação do Espírito"; "aquele foi um gol realmente abençoado"; nossa equipe está na unção"; "cruzei de cabeça baixa, mas ninguém sabe para onde o Espírito sopra e a bola caiu direto dentro do gol". Atenção: ler todas as frases com exclamação.

Mas sejamos francos. Na recente expansão evangélica, para cada Kaká há mil Marcelinhos Cariocas. O primeiro é tratado como um anjo; já o segundo... Mas não estou interessado no aspecto individual da religião. A religião tem um aspecto social que não pode ser negado. Se assim não é, que cada um fique em casa confessando sua religião entre quatro paredes.

Ocorre, no entanto, que o lado social da religão cristã tem sido enfatizado de uma maneira que a muitos descrentes traz mais suspeitas e irritação do que curiosidade e atração. Não que o cristianismo irá agradar a todos. Isso é absolutamente impossível. Mas como não achar incômodo os cultos em alto-falantes que parecem querer ressuscitar até os filisteus para então convertê-los; e aqueles outros que leem a Bíblia em voz alta dentro dos trens lotadíssimos? E o funk gospel? E os jovens fervorosos que tatuaram no corpo a fidelidade à Igreja Renascer? E as lutas de vale-tudo como atração para o culto? E os pregoeiros de curas e milagres que pedem palmas pra Jesus? Pode haver sinceridade e lealdade em alguns casos, porém, o formato sensacionalista distorce a questão. E ainda: fica cada vez mais difícil distinguir o que é charlatanismo e o que é evangelismo, o que é busca de sustento através do dinheiro alheio e o que é sustento fiel de uma causa apostólica.

Por isso, no campo individual, nem todos recomendariam a forma como Kaká exalta sua crença na camiseta, muito embora ele pareça ser alguém que vive sua fé para além da inscrição na camisa branca, o que só aumenta minha admiração por alguém de falar calmo, de comportamento digno e ainda tão excepcional atleta. Sua real conversão conta muito, mas também não se despreze sua personalidade e o ambiente familiar favorável em que cresceu.

No âmbito coletivo, respeito a oração dos jogadores da seleção brasileira após a conquista da Copa das Confederações na África do Sul, mas discordo de que o círculo de atletas abraçados e ajoelhados no meio do campo seja de fato uma demonstração de fé. Talvez de religiosidade, algo de superstição, não de religião, e muito menos de fé.

Muitos evangélicos acharam a cena um momento de gratidão a Quem de direito, de fervor nacional-religioso, de enlace da fé. Então, cá pergunto: você já viu os jogadores logo antes de uma partida? Eles fazem uma roda abraçados, o líder grita palavras de ordem, xinga o adversário, eleva o espírito da moçada e aí todos rezam um Pai-Nosso em voz gritada. Se levassem um pé-de-coelho ou fizessem figa dava no mesmo. É esta a verdadeira religião, é este o evangelho simples de Cristo?

Sigo perguntando: se tivessem perdido a final daquela Copa, os jogadores fariam um círculo agradecendo porque fora feita a vontade do Pai? Quando Zidane e cia. eliminaram o Brasil em 98 e em 2006, nossos jogadores fizeram uma reunião testemunhal no meio do campo, descobriram camisas brancas com inscrições religiosas? Ah, então só posso mostrar que sou de Jesus em caso de vitória. Pode arranhar a imagem e dar lenha pra oposição se o nome Dele for involuntariamente associado à derrota, né? Nisso reside a questão: minhas ações cotidianas fazem mais pela minha religião do que rezas altissonantes, gritaria pública e figurino evangelizador.

A última pergunta: aqueles mesmo evangélicos que viram sua fé confirmada em rede mundial de televisão num evento laico valorizariam a liberdade de expressão e crença se, em vez de frases cristãs, um jogador vestisse algo dizendo "I belong to Buda", ou "I love Iemanjá", ou "Sou 100% Ogum"? Ou se tivesse escrito "Deus provavelmente não existe" ou "Eu também sou ateu"?

O evangelho conclama ao testemunho, incentiva o falar das boas novas da salvação a toda a gente. Esse mandado nunca deveria nos permitir a usar métodos que mais confundem que esclarecem. Quando a forma é espetacularizada ou invasiva, o conteúdo é invariavelmente distorcido seja por quem transmite seja por quem recebe a mensagem.

Comentários

Loren disse…
Muito lúcido o post, e concordo com o raciocínio. O evento me emocionou pq entendia q o nome de Cristo fora exaltado, mas nem todos recebemos tais msgs da mesma forma.

Lembrei-me apenas de uma situação semelhante por que o Ap. Paulo passou e é relatado no primeiro capítulo aos filipenses. Eis a conclusão q chega:

15 Verdade é que também alguns pregam a Cristo por inveja e porfia, mas outros de boa vontade;
16 Uns, na verdade, anunciam a Cristo por contenção, NÃO PURAMENTE, julgando acrescentar aflição às minhas prisões.
(...)
18 Mas que importa? Contanto que Cristo seja anunciado de toda a maneira, ou com fingimento ou em verdade, nisto me regozijo, e me regozijarei ainda.

Não é o ideal, mas pode igualmente produzir frutos; ainda q, como vc explicou, é uma atitude pouco razoável, q atrai alguns e afasta vários

Graça e Paz!
joêzer disse…
versos muito bem lembrados, loren.

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