Pular para o conteúdo principal

música encurta viagem

Entre as tantas lendas que cercam os lendários escritores brasileiros, tem uma que conta que o poeta Manoel de Barros estava num barquinho a deslizar no macio de um rio pantaneiro e de repente avistou no convés ninguém mais ninguém menos que Guimarães Rosa. E Rosa mirava o rio. E escutava os sons dos pássaros na margem do rio. Talvez já elocubrando, por que não?, os contos de A Terceira Margem do Rio. Sem saber como se aproximar e como se dirigir ao colega de profissão, Manoel de Barros chegou  mais perto e disse: "Passarinho encurta viagem, não?"

Na cidade, que não tem barquinho mas tem busão, viajamos quilômetros intermináveis. No carro ou no metrô ou no trem, ou tudo isso junto, estamos sempre apertados. Ninguém passa. Nem o tempo. Nessa lentidão arrastada das horas, sem passarinho, resta-nos a música. No trânsito, a música é o melhor amigo do homem.

Quer dizer, às vezes. Se é você quem escolheu o repertório que vai nos seus fones, tudo bem. Pra quem gosta, dá até pra escutar a tal canção do barquinho a deslizar no macio azul do mar. É um contraste saudável para o corre-corre das manhãs lotadas.

Mas se é o seu próximo, e o seu próximo faz questão de celebrar seu próprio gosto musical, e nas lotações os próximos da gente sempre estão próximos demais e nunca têm o mesmo gosto musical da gente, e se esse mesmo dito próximo resolve escutar sem fone o último sucesso do pop-sertanejo, é hora de exercer a paciência dos santos com toda a tua alma e com todo o teu entendimento. Ou então, aumente o volume do seu fone e continue a deslizar.

Em minhas viagens semanais, acabei aderindo aos fones. Tanto que agora, quando me perguntam qual a distância da Estação Campo Limpo à Barra Funda, eu digo: "Dois CDs de doze músicas cada". E de São Paulo à Curitiba? "De avião, pouco menos de um CD. De ônibus, é bom levar sua coleção inteira dos Arautos do Rei".

Voltando ao encontro dos dois escritores lá na cumeeira dessa postagem, não sei se eles se tornaram grandes amigos com aquele início de conversa. Mas com uma companhia dessas quem é que precisa de música e passarinho para passar o tempo?


Imagem daqui.

Comentários

Deise Carelli disse…
Guimarães Rosa: "O rio não quer chegar, mas ficar largo e profundo".

Manoel de Barros: "Natureza é uma força que inunda como os desertos".

...
joêzer disse…
que bonito, deise!
Deise Carelli disse…
Joéser,

Que prazer em conhecer você!
Seus textos são demais!!!
Estou saboreando aos pouquinhos...
Um abraço.
Não tem nada melhor que música para viajar, para trânsito, para estudar, para namorar, enfim, pra tudo! Arte é vida! Ótimo post! ;)

Quando puder, conheça o meu Blog TUDO SOBRE MÚSICA. É minha pequena contribuição para informar os profissionais da música. Seja bem vindo! http://lidianemadureira.com/blog

Postagens mais visitadas deste blog

o mito da música que transforma a água

" Música bonita gera cristais de gelo bonitos e música feia gera cristais de gelo feios ". E que tal essa frase? " Palavras boas e positivas geram cristais de gelo bonitos e simétricos ". O autor dessa teoria é o fotógrafo japonês Masaru Emoto (falecido em 2014). Parece difícil alguém com o ensino médio completo acreditar nisso, mas não só existe gente grande acreditando como tem gente usando essas conclusões em palestras sobre música sacra! O experimento de Masaru Emoto consistiu em tocar várias músicas próximo a recipientes com água. Em seguida, a água foi congelada e, com um microscópio, Emoto analisou as moléculas de água. Os cristais de água que "ouviram" música clássica ficaram bonitos e simétricos, ao passo que os cristais de água que "ouviram" música pop eram feios. Não bastasse, Emoto também testou a água falando com ela durante um mês. Ele dizia palavras amorosas e positivas para um recipiente e palavras de ódio e negativas par

paula fernandes e os espíritos compositores

A cantora Paula Fernandes disse em um recente programa de TV que seu processo de composição é, segundo suas palavras, “altamente intuitivo, pra não dizer mediúnico”. Foi a senha para o desapontamento de alguns admiradores da cantora.  Embora suas músicas falem de um amor casto e monogâmico, muitos fãs evangélicos já estão providenciando o tradicional "vou jogar fora no lixo" dos CDs de Paula Fernandes. Parece que a apologia do amor fiel só é bem-vinda quando dita por um conselheiro cristão. Paula foi ao programa Show Business , de João Dória Jr., e se declarou espírita.  Falou ainda que não tem preconceito religioso, “mesmo porque Deus é um só”. Em seguida, ela disse que não compõe sozinha, que às vezes, nas letras de suas canções, ela lê “palavras que não sabe o significado”. O que a cantora quis dizer com "palavras que não sei o significado"? Fiz uma breve varredura nas suas letras e, verificando que o nível léxico dos versos não é de nenhu

Nabucodonosor e a música da Babilônia

Quando visitei o museu arqueológico Paulo Bork (Unasp - EC), vi um tijolo datado de 600 a.C. cuja inscrição em escrita cuneiforme diz: “Eu sou Nabucodonosor, rei de Babilônia, provedor dos templos de Ezágila e Égila e primogênito de Nebupolasar, rei de Babilônia”. Lembrei, então, que nas minhas aulas de história da música costumo mostrar a foto de uma lira de Ur (Ur era uma cidade da região da Mesopotâmia, onde se localizava Babilônia e onde atualmente se localiza o Iraque). Certamente, a lira integrava o corpo de instrumentos da música dos templos durante o reinado de Nabucodonosor. Fig 1: a lira de Ur No sítio arqueológico de Ur (a mesma Ur dos Caldeus citada em textos bíblicos) foram encontradas nove liras e duas harpas, entre as quais, a lira sumeriana, cuja caixa de ressonância é adornada com uma escultura em forma de cabeça bovina. As liras são citadas em um dos cultos oferecidos ao rei Nabucodonosor, conforme relato no livro bíblico de Daniel, capítulo 3. Aliás, n