Nenhuma cultura está pronta e acabada para sempre. As expressões culturais são dinâmicas, se renovam ao agregar influências de outras culturas. A música judaica influenciou a música ibérica de 10 séculos atrás, fazendo surgir a tradição musical moura. Por outro lado, músicos judeus longe de Israel absorveram a cultura local para renovar a tradição. Assim, ouvindo a festiva canção “L’shana habaa” percebe-se a raiz da música moura/ibérica e como sua percussão está a um passo da música caribenha.
Nesse contexto de interação cultural, ouvimos o shofar e o alaúde e também o piano elétrico. Ouvimos a tradição no estilo de Uzi Hitman, compositor de “Adon olam”, e também a modernidade de Nurit Hirsh, regente e também compositora de mais de mil canções, autora de “Osse shalom”, originalmente composta para um festival de Música Chadíssica, de 1969, que se tornou parte da liturgia em sinagogas e comunidades judaicas no mundo inteiro.
A simplicidade melódica das canções esconde a sofisticação dos arranjos. André Gonçalves (irmão de Leonardo), Ronnye Dias, Wendel Mattos, David Maia, Samuel Krahenbühl e César Marques trabalham como artífices a serviço da carpintaria musical.
Na quarta canção do CD, há um belo arranjo orquestral em que as cordas vão se sobrepondo e dialogando com a voz principal da música. Já a música “L’cha dodi” abre o diálogo com o modo clássico-erudito de compor para vozes. Ao final, a canção é cantada a capella e a melodia recebe uma harmonização vocal requintada.
“L’cha dodi” é uma música tradicional que, num CD gravado por um adventista do sétimo dia, revitaliza as raízes e constrói pontes. É uma canção que antecede o shabat, fazendo parte do serviço religioso chamado “Cabalat Shabat” (Recebimento do sábado). No início, a canção diz: “A ordem ‘lembra-te e observa’ foi pronunciada de uma só vez / o D-s único no-la fez ouvir”. E mais adiante: “Vamos ao encontro do shabat, pois ele é a fonte da benção / estabelecido desde o princípio / foi a conclusão da criação / mas, no planejamento, o início”.
Quantas músicas são tão assertivas assim em relação ao sábado? Como esta canção é cantada em hebraico e faz parte da tradição judaica, ela parece comum. Mas no contexto da apologia sabática, me arrisco a dizer que ela é singular.
O diálogo com o adventismo corresponde a uma volta às origens bíblicas também na questão fundamental da lei de Deus. A oitava música do CD transcreve os versos de Apocalipse 14:7 e 12. E aí está a mais perfeita tradução da ética desse CD: o diálogo interreligioso que não perde a identidade original. O adventismo de Leonardo Gonçalves não foi diluído na música judaica. Ao contrário, a cultura musical está a serviço da identidade religiosa de missão.
Juízo, reconhecimento de um Criador literal (“adorai aquele que fez”, isto é, o Criador), e a citação “aqui está a perseverança dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé de Yeshua”: a coragem de afirmar tais distinções doutrinárias só pode vir de uma honesta convicção pessoal.
E por que obedecer aos mandamentos? A canção “V’haer enemu” responde: “apega nosso coração aos Teus mandamentos / a fim de não nos envergonharmos e sermos humilhados / e não virmos a fracassar para todo o sempre”.
Na penúltima música do CD, composta por André R. S. Gonçalves, os trechos selecionados de cada estrofe ressaltam quatro pontos importantes:
- a graça divina: “a Tua ira se retirou e Tu me consolas”;
- a salvação: “eis que D-s se tornou a minha salvação”
- a missão de levar a mensagem ao mundo: “fazei notório Seus feitos entre os povos / contai quão excelso é Seu nome”
- a adoração como resposta aos atos de Deus: “cantai ao Senhor porque fez coisas grandiosas”.
Um dos versos da canção diz: “porque o Senhor é a minha força e o meu cântico”. Isso é como dizer: o Senhor é meu mandamento e minha música, a minha ética e a minha estética.
A estética é finita, limitada. A ética bíblica é eterna. A melodia (a estética do homem) muda enquanto a Palavra (a ética de Deus) não muda. Os músicos cristãos costumam unir a estética das culturas humanas à ética bíblica. A diferença em “Avinu Malkenu” é que sua ética está na busca de diálogo sem perder as raízes ao passo que sua estética reforça uma volta às origens sem temer o diálogo. Que cresça e dê frutos.
P.S. para um músico: Wendel Mattos faleceu há poucos dias. Um trecho de “Adon olam” diz: “Nas Suas mãos eu depositarei o meu espírito no momento do sono, e então despertarei”. Não o conheci pessoalmente, mas posso dizer que para nós, que o perdemos, parece que uma longa e desafinada estrada ainda nos separa do reencontro. Mas para Wendel, seu descanso em Deus é apenas uma brevíssima e silenciosa pausa antes dos acordes sinfônicos da ressurreição que virá um dia para os que dormem no Senhor.
Comentários
abs.
um forte abraço
O Léo é fora de série assim como o Joêzer! Parabéns meu amigo!
Tatiane - São Paulo/SP
adorei o 'carpintaria musical'... é realmente algo nesta linha... gosto da expressão 'the craft' em inglês...
tenho, agora, no entanto, dificuldade em ouvir o Wendel tocando sem me emoncionar fortemente...
Bem, de qualquer forma sua análise não deixa concluir outra coisa, senão que Leonardo Gonçalves é um perfeccionista.
aí que está. em nenhum momento o cd apresenta a lei em detrimento da graça. a proposta, até onde entendi, é refletir sobre as raízes do cristianismo. a obediência à lei e a percepção da graça divina não se sobrepõem mutuamente.
o problema é achar que a graça anula a lei ou a lei engessa o espírito. isso também é uma dicotomia que talvez precise ser revista por todos os cristãos.
sigamos dialogando.
a sério. fico satisfeito de ter compreendido as intenções e as ações dos produtores.