"Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime". Luiz Gama (1830-1882), advogado e jornalista.
Sabemos que a abolição da escravatura, em 1888, não aboliu o preconceito de cor nem promoveu a figura do negro tão violentamente atacada em sua dignidade humana. Os ex-escravos passaram a ser tratados como um empecilho ao progresso social e biológico.
Na Europa, o sociólogo e psicólogo francês Gustave Le Bon defendia "a superioridade racial e correlacionava as raças humanas com as espécies animais, baseando-se em critérios anatômicos como a cor da pele e o formato do crânio", segundo o livro Raça Pura - Uma história da eugenia no Brasil e no mundo, de Pietra Diwan (Editora Contexto).
Entre os figurões da sociedade brasileira que abraçaram o pensamento eugênico estava o escritor Monteiro Lobato, cujas cartas mostram admiração pelo médico Renato Kehl, principal divulgador das teorias de Le Bon no Brasil. Se racismo e “purificação” das raças era um pensamento típico do começo do século XX, então Monteiro Lobato empenhou-se bastante em propagar esse pensamento.
Em 1926, quando escreveu o livro O Choque das raças ou o presidente negro, Lobato queria vê-lo publicado nos Estados Unidos, onde ocupava o cargo de adido cultural no consulado brasileiro de Nova York. Em carta ao amigo Godofredo Rangel, Lobato comenta: "Um romance americano, isto é, editável nos Estados Unidos (...). Meio à Wells, com visão do futuro. O clou será o choque da raça negra com a branca, quando a primeira, cujo índice de proliferação é maior, alcançar a raça branca e batê-la nas urnas, elegendo um presidente negro! Acontecem coisas tremendas, mas vence por fim a inteligência do branco. Consegue por meio de raios N. inventados pelo professor Brown, esterilizar os negros sem que estes se dêem pela coisa" [a “inteligência” do branco insere uma substância em produtos para alisamento de cabelos crespos].
Estou relembrando esse contexto para falar de Monteiro Lobato e dos livros infantis A caçada da onça, de 1924, e Caçadas de Pedrinho, de 1933. O MEC recomendou a contextualização e a orientação quanto a sua utilização em sala de aula, visto o forte teor racista contido nesses livros. Há quem veja na atitude do MEC uma censura à literatura, à livre interpretação, à livre expressão. Dizem que, agindo assim, logo estaremos podando trechos colonialistas, misóginos ou machistas de livros de Machado de Assis, José de Alencar ou Rudyard Kipling. Nem mesmo a Bíblia escaparia da sanha “politicamente correta” do Ministério de Educação e Cultura!
Quanto exagero! A liberdade de usar esse ou aquele livro não está sendo cerceada. O que está acontecendo é uma orientação à contextualização de obras quando estas são utilizadas com fins pedagógicos. No caso, os livros de Monteiro Lobato são lidos por e para crianças. Elas já estão preparadas para ler fortes termos racistas e proceder sozinhas a uma interpretação do contexto em que os livros foram escritos? Aliás, os livros de Monteiro Lobato podem mesmo ser utilizados como base para promover entre crianças a discussão do racismo?
Todo mundo conhece alguém racista. Mas ninguém diz que o Brasil é racista, né? Imagine que você é uma criança negra, uma das 4 ou 5 da sala numa multidão de brancos, e na hora da leitura em classe do livro de Lobato você ouve os trechos: “macaca de carvão”, “carne preta”, “urubu fedorento”. Se você acha que isso é normal e não é ofensivo, é porque não está conseguindo se colocar no lugar do outro. Imagine como era ser uma criança judia numa Alemanha antissemita. Imagine ser um índio e ser depreciado pela condição de índio.
Os contrários ao parecer técnico do MEC querem proibir uma possível nota acrescentada ao livro de Monteiro Lobato, como se isso fosse um desrespeito à obra do escritor. Curioso é que ninguém grita por causa de uma nota acrescentada sobre o respeito aos animais, no caso do livro de Lobato, a onça. Que mundo é esse em que as onças, que devem ser protegidas da extinção, merecem mais atenção e respeito do que as crianças?
Encerro com o depoimento de crianças de 6 anos no livro Do Silêncio do Lar ao Silêncio Escolar: racismo, discriminação e preconceito na educação infantil, de Eliane Cavalleiro (Editora Contexto):
“Só porque eu sou preta elas falam que não tomo banho. Ficam me xingando de preta cor de carvão. Ela me xingou de preta fedida. Eu contei à professora e ela não fez nada''
[Por que não querem brincar com ela]‘‘Porque sou preta. A gente estava brincando de mamãe. A Catarina branca falou: eu não vou ser tia dela (da própria criança que está narrando). A Camila, que é branca, não tem nojo de mim''. A pesquisadora pergunta: ‘‘E as outras crianças têm nojo de você?'' Responde a garota: "Têm".
Mais:
Não é sobre você que devemos falar, artigo da escritora Ana Maria Gonçalves (do qual extraí informações, citações e argumentos)
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