Desde seu lançamento, em 2004, A Paixão de Cristo, é um dos filmes que mais tem emocionado o público cristão e dividido a plateia. Teria o diretor, o católico Mel Gibson, exagerado nas cenas de violência impostas a Jesus ou o realismo sanguinolento do filme contribui para comover a sensibilidade moderna? A estilização promovida pelo jogo de iluminação e enquadramento está a serviço do antissemitismo ou está contando uma velha e tocante história com a linguagem de hoje?
As cenas filmadas que desfiguram o corpo de Jesus são brutais e incômodas. A plateia atual, espremida entre a violência crua dos telejornais e a barbárie dos filmes de ação, se mostra cada vez menos sensível à brutalidade, o que gera um aumento de violência nas encenações cinematográficas, que por sua vez dessensibiliza ainda mais as plateias, o que leva os cineastas a aumentar o teor de crueldade nos filmes. Não é um círculo. É uma progressão escalar.
Se os filmes clássicos sobre a vida de Jesus ofereciam um retrato respeitoso e distanciado da Paixão, a hiperviolência é o método empregado por Mel Gibson para suscetibilizar o público de hoje. Porém, pode-se questionar a validade ética de uma pregação violenta para uma plateia acostumada a violência.
Para alguns, o antissemitismo do filme estaria nas cenas da multidão de judeus que grita e assume a autoria da morte de Cristo. Mas o filme também dá importância a outros judeus, como os discípulos, Simão Cirineu, Maria Madalena e a mãe de Jesus, Maria. Devido à leitura católica de Mel Gibson, Maria recebe tratamento diferenciado.
Foram as convicções católicas de Gibson que o levaram até o livro "A Dolorosa Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo", publicado em 1833 por Clemens Brentano a partir de visões da mística alemã Anna Catharina Emmerich. Republicado em 2009 pela Editora Paulus com o título "A Paixão de Jesus Cristo", o livro traz os relatos que "descrevem ainda mais pormenorizadamente os sofrimentos e os passos do Salvador na dolorosa paixão". Anna Emmerich (1774-1824), cujo processo de canonização está envolto em polêmicas, caiu enferma aos 16 anos e, desde então, teria passado a relatar visões e revelações da vida de Jesus.
O próprio Mel Gibson acrescenta detalhes pessoais ao seu relato da Paixão: a representação de demônios interpretados por crianças, encenando a humanidade que não se portava como filhos de Deus, mas como filhos de Satanás; o diabo com feições andróginas; o corvo que arranca os olhos do ladrão que zomba de Cristo na cruz; os instrumentos de tortura que arrepiam as plateias. Vale lembrar que não se pode jamais entregar uma história real ao espectador. Mesmo um documentário será somente a visão (editada) de seus realizadores. A Paixão de Cristo é uma representação de um fato, nunca o fato em si, e os acréscimos de Mel Gibson são uma forma simbólica de falar a linguagem do público.
O aparato técnico do filme é de grande qualidade, como a iluminação expressionista, de cores sombrias e fortes contrastes. A fotografia é do craque Caleb Deschanel, cujos enquadramentos inspiram-se nos quadros do renascentista Caravaggio. A trilha sonora de John Debney, com percussão étnica apurada e vocais emocionantes, aumenta a sensação de opressão e solenidade.
Enfim, o propósito do diretor era certamente fortalecer a fé dos cristãos, sendo a hiperviolência e os detalhes não-bíblicos os meios questionáveis da Paixão segundo Mel Gibson.
Atualização:
Um blog não tem tempo nem espaço para aprofundar questões. Se puder fazer as perguntas certas e mostrar outras leituras já está ótimo. Quem vai fundo na discussão das controvérsias sobre o filme acima são os autores de Paixão de Cristo: Mel Gibson e a Filosofia (org. William Irwin).
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